SÉRIE NENHUM DIREITO A MENOS | Na última década, o fortalecimento da política de educação no país foi responsável pela expansão no número de universidades, institutos federais, pela oferta de novos cursos de mestrado, doutorado, especializações, programas de financiamento, intercâmbios, avanços no campo da legislação com a construção do Plano Nacional de Educação (PNE) e investimento na educação básica com repasse de verbas significativas.
Esse aparato todo auxiliou estados e municípios na busca por uma educação pública de qualidade, na tentativa de minimizar negligências históricas para a população mais pobre do país. O crescimento levou a educação para estudantes do campo e da cidade, como também para educadores/ as que puderam participar de processos formativos. Porém, em apenas dois meses, o governo interino presidido por Michel Temer assume o poder pondo em prática medidas retrógradas. Para profissionais da área não resta dúvidas de que todos esses ganhos estão ameaçados.
Ao assumir o governo, o presidente interino unificou as pastas de educação e cultura. A atitude reforçou o coro de vaias e críticas na recepção ao ministro da Educação José Mendonça Bezerra Filho (deputado pelo DEM-PE), e o governo voltou atrás na decisão. O partido do ministro tem um histórico de decisões contrárias ao avanço da educação. No ano de 2009, o Democratas entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) para solicitar o fim da política de cotas do governo federal. Além disso, a legenda é contra o PROUNI, FIES, ENEM e outras políticas e programas em educação.
Embora haja muito a lamentar, ainda há uma luz no fim do túnel já que o golpe na educação de 2016 traz novos elementos para o cerne dos debates. Dentre eles, estudantes dispostos a lutar pelas pautas que julgam fundamentais para a educação. Ainda no governo da presidenta eleita Dilma Rousseff, na tentativa de dialogar com o governo federal, jovens ocuparam escolas públicas nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará e Rio Grande do Sul.
Em São Paulo, por exemplo, o governo estadual havia anunciado fechamento de escolas, consequentemente reduzindo vagas. Na tentativa de “salvar” a Educação, os estudantes tentaram “salvar” as escolas. Invisibilizados ou mal vistos pela mídia hegemônica, os jovens reagiram trancando portões, erguendo faixas e escrevendo em velhos quadros de giz os desejos de mudanças: reabertura de laboratórios, tecnologia para toda a área da escola, passe livre, revitalização de quadra esportiva, etc. “Essas atitudes nos trazem ânimo, motivação e alimenta nossa esperança de construir um novo modelo de educação. Esses movimentos organizados pelos estudantes podem se tornar um marco por uma educação pública de qualidade. Através desse movimento é que vamos construir perspectivas de mudanças. Até mesmo dentro do governo Dilma tínhamos dificuldades em pautar coisas que favorecem a educação de qualidade. A mobilização dos estudantes de forma ativa, propositiva, de que tipo de educação eles querem é fundamental para o futuro do nosso país e o futuro da democracia do nosso país”, avalia o professor da Universidade Federal do Piauí (UFPI) e pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação do Campo e integrante da RESAB (Rede de Educação do Semiárido Brasileiro), Elmo de Souza Lima.
Assim como em outras pastas ministeriais, a Educação também sofre ameaças de cortes de gastos com a justificativa de que é para cobrir os “furos” nas contas públicas. “De fato, na última década tivemos uma sinalização muito positiva do governo federal. No Piauí, a universidade praticamente dobrou de tamanho. Na educação básica tivemos preocupação com o seu fortalecimento. Inclusive com aprovação de fundos do Pré-Sal destinando um percentual para fortalecimento da educação pública”, avalia Elmo Lima.
Para o professor, a educação do campo também teve avanços. Ele cita o Pronacampo (Programa Nacional de Educação no Campo) como uma medida de fortalecimento para formação de educadores e educadoras, além da oferta de licenciaturas na área. A agricultora Adailma Ezequiel Pereira, de 25 anos, moradora do sítio Lutador, no município de Queimadas, Semiárido paraibano, é uma entre as jovens da geração dos anos 1990 que teve a oportunidade de estudar. Também filha de agricultores familiares, de uma família de 10 irmãos e irmãs, Adailma é a primeira a concluir o ensino superior na família.
Formada em Agropecuária pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), no campus II do município de Lagoa Seca, ela conta que concluiu a educação básica na área rural, em escolas com estrutura precarizada. Para concluir o ensino médio foi preciso ir para a cidade, enfrentar transportes ruins e longas distâncias. Os irmãos mais velhos não tiveram as mesmas oportunidades que ela – são de gerações anteriores, onde o acesso à educação era privilégio de outras classes sociais.
Atualmente, a jovem agricultora faz um curso de extensão rural à distância pela UFCG (Universidade Federal de Campina Grande), e está na batalha por uma bolsa de estudos. “O curso já sofreu ameaça de não continuar. A coordenação informou que com esse novo governo talvez a verba não chegasse. Mas até agora a próxima etapa segue planejada para acontecer”, conta esperançosa.
Outra conquista, fruto dos movimentos sociais foi a construção da legislação com o Plano Nacional de Educação (PNE), formulado pelo Ministério da Educação em conjunto com vários setores da sociedade civil. O Plano que está em seu segundo ano de ação apresenta metas e propostas para serem implementadas em dez anos. Os compromissos vão da educação básica à universalização da alfabetização e ampliação da escolaridade. O PNE é a base para elaboração de planos estaduais, distritais e municipais. Entre as benesses está a determinação de percentual do PIB (Produto Interno Bruto) para o financiamento da educação. Hoje, o país aplica 6% do PIB em educação – ou cerca de R$ 220 bilhões. A meta é que em 2017 chegue a 7% e, no final, em 2024, a 10%. No entanto, os números não são garantia de um ensino de qualidade.
A destinação desses recursos previstos pelo PNE é um assunto delicado. Por esse motivo o Conselho Nacional de Educação (CNE) debate sobre o controle da educação superior nas mãos de grandes grupos empresariais. “A tentativa é de impor limites para essa concentração. O que prevalece [neste atual Ministério da Educação] é o retorno de uma pauta de uma educação neoliberal que favorece aos interesses privados e organismos internacionais, para atender aos interesses do mercado. Com relação aos investimentos que se gestava a perspectiva é que esse investimento não só seja reduzido, mas que seja transferido também para a iniciativa privada. Ou seja, a tendência é transformar a educação numa praça de mercantilização e favorecimento de grandes grupos empresariais para atuar na área da educação, inclusive com financiamento público”, pontua o professor Elmo Lima.
Em meio aos retrocessos está ainda o desmonte da Secadi (Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão) com o objetivo de eliminar do debate a pauta da diversidade nas escolas. A Secretaria tem o papel de implementar políticas para alfabetização de jovens e adultos, educação ambiental, educação em direitos humanos, educação especial, do campo, escolar indígena, quilombola e educação para as relações étnico-raciais.
Outro gargalo na educação é a política de financiamento estudantil promovida através do FIES (Fundo de Financiamento Estudantil) e do PROUNI (Programa Universidade para Todos). O governo interino cortou 90 mil vagas do FIES. Apesar de ser uma política que favorece a iniciativa privada, ambos contemplaram parcela da população da área urbana e rural com baixa renda. Beneficiaram estudantes com dificuldades de acesso a graduação, frutos de uma educação básica de péssima qualidade oferecida por escolas da rede pública no país.
“O projeto do governo interino não contempla, não visualiza essa perspectiva dos jovens das classes populares terem acesso ao ensino superior como prioridade. A prioridade é o ensino médio mercantilizado numa perspectiva para o mercado de trabalho. Esse é o projeto dos intelectuais que dominam o Ministério da Educação hoje”, avisa Elmo. De acordo com a análise do educador o foco do Ministério é investir em mão de obra para atender a demanda de mercado. É um processo onde cada vez mais as classes populares terão um ensino médio rebaixado. A preocupação com formação crítica, cidadã, espírito participativo, solidário e princípio que eram defendidos por educadoras desde a década de 80 não vão estar presentes no projeto de educação desse governo atual.
Rede de Educação no Semiárido resiste ao golpe
A palavra nucleação aflige representantes de organizações da sociedade civil, fóruns e redes em educação pelo Semiárido brasileiro. O medo de ver as poucas escolas rurais serem desativadas, ou simplesmente a transferência de estudantes para unidades de ensino na área urbana acende o alerta para quem luta por uma educação contextualizada e de qualidadena região. Em Alagoas, a RECASA (Rede de Educação Contextualizada do Agreste e Semiárido Alagoano) fundada em 2007, composta de sociedade civil e poder público, vêm discutindo desde então uma política coerente com as especificidades do Semiárido.
Braço da RESAB na região, a Rede vem sentindo o retrocesso desses dois meses de governo interino. “Isso tem sido pauta do dia a dia das discussões na Rede. Sentimentos o retrocesso na ‘cara’. Um projeto de educação do campo vai abaixo, depois de 10 ou 12 anos. Pra nós fica a lição que precisamos resistir. É um momento de fortalecer mais a base. A conjuntura política é complicada pra o trabalho da Rede aqui no estado”, analisa a coordenadora da RECASA, Cristianlex Soares dos Santos.
Segundo a coordenadora, em 2013, com o acesso ao PDDE Escola do Campo do MEC, as escolas da área rural de Alagoas receberam repasses financeiros para custear a manutenção e conservação das instalações, para aquisição de mobília e realização de atividades educativas e pedagógicas. Mas essa iniciativa foi suficiente somente para dar conta de melhorias no espaço físico, garantindo carteiras, giz, quadros, etc. As escolas rurais continuam sendo desativadas. Essa é uma realidade presente em todo o Semiárido brasileiro. Cristianlex afirma que o processo de nucleação faz com que crianças e adolescentes percam, ano a ano, a sua identidade do campo. Elas precisam estudar nas áreas urbanas dos municípios, o que é uma contradição com o projeto de educação contextualizada no campo.
“Quando juntamos professores em 2009, para ouvi-los, eles apontavam como necessidade a formação na área e disponibilidade de material didático contextualizado. Hoje, em 2016, já conseguimos publicar três cadernos educativos, com experiências de educação e atividades pedagógicas. E realizamos um programa de formação que a cada ano vem formando pessoas da rede de ensino numa perspectiva de proposta de educação contextualizada”, conta.
Em 2015, a Rede teve um impulso com o Programa Cisternas nas Escolas da ASA (Articulação Semiárido Brasileiro). O papel da Rede é de estar sempre impulsionando, animando, apesar da conjuntura política ser desfavorável nos últimos tempos”, explica a coordenadora.