No painel Direito à Cidade e Comida de Verdade, realizado na manhã do segundo dia (22/10) do I Encontro Nacional de Agricultura Urbana, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), foram apresentadas algumas experiências desenvolvidas Brasil afora. A presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), Maria Emília Pacheco, também do Núcleo Executivo da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), destacou as inovações e renovações do debate sobre o tema nos últimos anos.
O título do painel mostra, segundo ela, o quanto o movimento da agricultura urbana caminhou até a realização de um encontro nacional com participação de todas as regiões do país. Esse tema junta dois princípios constitucionais, que são a função social da terra e o direito à alimentação, complementou. As mudanças nos nossos hábitos alimentares, frutos de um processo de concentração da produção e distribuição dos alimentos nas cidades, sãos vistas com muita preocupação pela estudiosa. Para ela, quatro questões são muito importantes para continuação de avanços nesse setor: o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) precisa ser mantido nas suas várias modalidades, a adequação das normas sanitárias às necessidades de agricultura familiar, atenção às nossas culturas alimentares por conta de mudanças na Lei Rouanet e na alteração da rotulagem dos transgênicos e lutar pela não liberação da tecnologia Terminator de sementes.
“Um país com soberania alimentar tem que ter autonomia e não pode estar sub-julgado à determinação crescente do agronegócio, pois até o direito à informação querem tirar de nós. Estamos longe, mas não podemos perder de vista que o nosso conceito de segurança alimentar tem uma amplitude bem significativa. No Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional tem uma diretriz que fala sobre abastecimentos, e surge a proposta de implantar a Política Nacional de Agricultura Urbana e Periurbana. É muito importante esse debate, e precisa haver um compromisso de Estado: rever profundamente o planejamento urbano e associar isso à qualidade do alimento que queremos”, disse a antropóloga.
A comunidade Vila Autódromo, que fica na zona oeste do Rio de Janeiro, é um ícone de resistência na questão da moradia. Localizada ao lado de onde serão alojados os atletas das Olimpíadas de 2016, seus moradores sofrem com a especulação imobiliária na região. Embora muitos tenham sido retirados, outros continuam resistindo e plantando de forma agroecológica em seus quintais. A agricultura urbana faz parte da cultura da comunidade. Maria da Penha, moradora há 23 anos na Vila, contou que a comunidade foi fundada pelos pescadores de Jacarepaguá e construtores do antigo autódromo há 45 anos. São 25 anos de luta pela permanência no local, complementou, explicando que essa não é a primeira ameaça de remoção. Apesar de legalizados por todos os direitos de uso, os governantes estão conseguindo removê-los: de 583 famílias passou para 120, e apenas 50 querem ficar na terra.
“Tiraram até mesmo à força, é uma luta muito árdua. E nossa horta comunitária e quintais são muito importantes, todas as casas tinham árvores frutíferas. Tiram as casas para construção de prédios enormes e a qualidade de vida fica cada vez pior. É importante trazer para dentro das universidades esse debate de agricultura urbana, para que os novos profissionais tenham uma cabeça mais pura em relação à natureza e nossa cidade. Uma alimentação mais saudável, porque nossas crianças só comem biscoitos e coisas industrializadas. Nossos governantes não respeitam o direito à moradia, ali poderia ser um legado social maravilhoso que estão nos tirando”, desabafou.
Formada ma área de urbanismo, Heloisa Costa, do departamento de geociências da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), reforçou a importância de pautar a função social da terra nas políticas públicas e na academia. Segundo ela, tudo está associado a duas lutas históricas que surgiram na década de 60, reforma urbana e reforma agrária, que após a Constituição de 1988 se consolidaram mas não conseguiram efetivar na prática seus instrumentos.
“Existe um descompasso entre o texto legislativo e a prática. É preciso pensar que a cidade pode ser diferente da forma que está sendo produzida de acordo com as relações de poder e acesso a terra. Plantar é uma função importante da cidade, há uma luta enorme para colocar no plano diretor que a atividade agrícola pode ser como o comércio e outras questões. É preciso uma mudança de mentalidade, a questão central é entender esse campo cego da questão da terra: a cidade não acontece espontaneamente, tem agentes sociais com interesses distintos. Terra tem dono e tem preço”, alertou.
Uma experiência com agricultura urbana em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, também foi apresentada no painel. A Rede de Mulheres Negras de Soberania Alimentar é constituída por representantes de bairros e oferece alimentação saudável para usuários de drogas, moradores de ruas e outros públicos vulneráveis na cidade, além de parcerias com escolas. O Fórum Fome Zero atende quase 5 mil famílias. Segundo Ermínia Duarte, representante da Rede, muitas dificuldades estão acontecendo pela falta de acesso ao PAA que havia antes.
“Às vezes as comunidades são ricas e não sabem suas potencialidades, muitas com terras mas sem a cultura de cuidá-las. Aprendemos que se não nos unirmos não conseguimos vencer. Os agricultores não têm liberdade de vender seus produtos nas periferias, porque existe toda uma burocracia que impede o acesso ao PAA para que tenhamos a fartura que tínhamos”, criticou.
Fotos: Clara Sá.