Por Vinicius Mansur, da Carta Maior
Passada a árdua tarefa de realizar a Cúpula dos Povos, que, segundo dados da organização, trouxe cerca de 20 mil ativistas e militantes ao Rio de Janeiro e movimentou mais de 300 mil pessoas durante oito dias em seu espaço no Aterro do Flamengo, as organizações sociais que construíram o evento projetam para o futuro a colheita dos principais frutos. “A grande expectativa é que as convergências que pudemos fazer aqui virem lutas nos territórios”, sintetiza Marcelo Durão, dirigente da Via Campesina.
A expectativa nasce do saldo bastante positivo contabilizado por estas organizações a partir do processo político que gestou a Cúpula, iniciado em 2010 e formalizado na figura do Comitê Facilitador da Sociedade Civil Brasileira para a Rio+20 em janeiro de 2011, durante o Fórum Social Mundial (FSM) de Dakar, no Senegal. Mas, aparece em contraste flagrante com a desesperança quando a avaliação passa à reunião dos chefes de Estado da Rio+20.
Críticas ao evento oficial
A negativa das Nações Unidas (ONU) à realização de um balanço sobre o que foi feito nos 20 anos pós-Rio-92 e a ausência dos principais mandatários dos EUA, Alemanha e China foram os primeiros sinais da irresponsabilidade com o futuro, destaca a secretária de meio ambiente da CUT, Carmen Foro. O segundo, aponta ela, foi o fato do G-20, na mesma semana, destinar US$ 456 bilhões para tentar sanar a crise na Zona do Euro e alegar falta de recursos para a transição ao propalado desenvolvimento sustentável na Rio+20:
“A demonstração deveria ser inversa, a lógica de desenvolvimento que foi constituída levou a Europa a despencar, à crise climática, ao desemprego em massa, ao trabalho precário, à crise alimentar. Se nós queremos chegar num outro modelo, é preciso investir nele”.
Uma das representantes da Cúpula dos Povos no acompanhamento das negociações oficiais, Iara Pietricovsky, também coordenadora da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais, qualifica o documento final da Rio+20 – O futuro que Queremos – como “covarde”, por fragilizar, ao invés de reafirmar, conquistas históricas obtidas em tratados e convenções internacionais anteriores – ao retirar as referências aos direitos sexuais reprodutivos e ao deturpar o conceito de “responsabilidades comuns porém diferenciadas” entre os países, por exemplo – e como “pobríssimo”, por não definir propostas concretas de financiamento e governança, tornando-se, basicamente, uma carta de intenções. “O que saiu de mais importante foi o lançamento do Bolsa Família, uma política focal, para acabar com a pobreza do mundo. É muito pouco do ponto de vista da urgência e das soluções necessárias”, protesta.
Outro resultado da Rio+20 tido como positivo pelo Brasil e pela ONU, mas relativizado pela Cúpula dos Povos, foi a maior abertura à participação da sociedade civil brasileira – representada na Comissão Nacional da Rio+20 – e internacional – responsável, segundo a ONU, pelo envio de aproximadamente 4,8 mil páginas de propostas para o Rascunho Zero – documento-base de discussão da conferência. “De fato foram convocados os principais movimentos e organizações da sociedade civil, mas sem escuta. Todos os temas que nós declaramos fundamentais não foram colocados na negociação como inegociáveis”, disse Iara Pietricovsky.
Para Sandra Quintela, do Jubileu Sul, as palestras proferidas por nomes da sociedade civil dentro do espaço oficial da Rio+20, chamadas de Diálogos, tampouco são significativas diante da deterioração dos espaços decisórios da ONU, cada vez mais expostas ao lobby de grandes corporações e similares aos da Organização Mundial do Comércio, onde tem mais peso as maiores economias.
Ainda que a responsabilidade pelo resultado final da Rio+20 possa ser diluída no contexto de um débil sistema ONU de decisões, a atuação do Brasil não foi poupada de críticas. Os relatos de Pietricovsky das negociações oficiais atestam que o Brasil jogou em baixo perfil durante todo o tempo porque a presidenta da República não deu aos negociadores brasileiros o poder condizente à liderança que o país deveria assumir. “Acompanhei todas as dificuldades e angústias dos negociadores brasileiros, sei que a cabeça deles estava muito acima disso tudo que saiu. Não era convicção deles, por exemplo, tirar algo [direitos sexuais reprodutivos] que esteve o tempo inteiro no texto negociado porque o Vaticano exigiu…”, conta.
A timidez brasileira também ficou explícita pela falta de anúncios de políticas próprias durante a Rio+20, disse Carmen Foro. “Esperávamos o lançamento de uma política nacional de agroecologia, debatida com o governo faz tempo, mas que recebeu cortes na área financeira. Você imagina o que seria se o governo anunciasse os US$ 10 bilhões que foram para o FMI para o enfrentamento ambiental, para assistência técnica, agroecologia?”.
A esperança nos povos
Quando a avaliação passa à Cúpula dos Povos, o primeiro ponto destacado pelas organizações que o protagonizaram é o fato de ter havido uma cúpula única em meio a atores tão numerosos quanto diversos: movimentos de mulheres, indígenas, negros, juventude, agricultores familiares e camponeses, sindicais, quilombolas, ambientalistas, entidades religiosas, organizações de direitos humanos, etc, havendo representações dos cinco continentes do globo.
O processo político que gestou esta unidade superou algumas divergências, decidindo, por exemplo, que o espaço da Cúpula seria livre de partidos e corporações. A definição da metodologia do evento foi outro ponto de árduos debates, no qual o modelo Fórum Social Mundial (FSM), baseado essencialmente em atividades autogestionadas e sem grandes pretensões deliberativas, foi suplantado pela composição de cinco plenárias temáticas e uma assembléia de convergência destas plenárias, contemplando ainda alguns espaços na agenda para atividades autogestionadas . Cada uma das plenárias tirou dois documentos, um sintetizando “as causas estruturais e as falsas soluções” encontradas para o tema em debate e outro apontando as “nossas soluções”, com propostas e agenda de lutas. À assembleia geral coube a definição da declaração final da Cúpula.
“Está claro que as ações que tivemos no final dos anos 1990 e início dos 2000 estão se esgotando, estamos num momento de gestar as novas formas de se organizar. Nós queríamos tirar propostas, decisões, procurar convergências, bandeiras comuns e que não ficasse cada um em seu campo de articulação, ecologista com ecologista, sindicalista com sindicalista…”, disse Nalu Faria, da Marcha Mundial de Mulheres.
Outro objetivo atingido, segundo a feminista, foi mostrar a força de mobilização de rua da Cúpula dos Povos. Foram realizadas a Marcha Global, que reuniu todas as organizações na avenida Rio Branco, com cerca de 80 mil pessoas; uma passeata de mulheres; um ato de solidariedade na Vila Autódromo – comunidade localizada ao lado do centro de convenções que sediou a Rio+20, ameaçada de despejo justificado por obras da Copa 2014 e Olimpíadas 2016; protestos na sede do BNDES e da Vale; um ato dentro das instalações da Confederação Nacional da Agricultura (CNA) na Rio+20; a Marcha Ré – contra retrocessos ambientais no Legislativo; entre outras.
Para o coordenador da Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (Dhesca Brasil), Darci Frigo, ao lado da metodologia e das mobilizações, o fato dos diferentes movimentos sociais ficarem alojados, em sua grande maioria, no mesmo espaço – no Sambódromo – também foi muito importante. “Isso foi inédito, um passo importante na construção da unidade política”.
Segundo Carmen Foro, da CUT, esta unidade foi assentada de maneira muito forte na ideia de que a mudança do modelo de desenvolvimento não pode ser baseada na apropriação dos bens comuns da natureza pelo mercado, mas também na identificação de possibilidades de ações a serem construídas. Os documentos saídos da Cúpula listam quase 20 campanhas e a declaração final traçada pela Cúpula ainda aponta para a construção de um dia mundial de greve geral. “Nesse ambiente de crise, é um desafio”, diz Foro.
Nenhuma nova instância de organização, entretanto, foi criada a partir da Cúpula dos Povos. “Não queremos nos transformar em organizador de eventos. A Cúpula foi um evento de organizações que já estão em luta. A expectativa é que possamos fomentar encontros e processos de mobilização e articulação em nossos territórios, a partir das identificações que fizemos [na Cúpula]. E saímos de lá com bastante energia”, explicou Nalu Faria.
(*) Reproduzido da Carta Maior.