Há alguns anos vem crescendo a insatisfação dos agricultores familiares em relação às normas sanitárias do país, que inviabilizam ou dificultam seus empreendimentos. A cada encontro ou reunião do campo agroecológico aparece uma série de relatos nesse sentido, principalmente das organizações que trabalham com cooperativas de polpas de frutas ou com produtos derivados de origem animal.
Para falar sobre o assunto entrevistamos Luis Roberto Carrazza, secretário executivo da Rede Cerrado e Rodrigo Noleto, assessor do ISPN, que participaram da construção por parte da sociedade civil da Resolução da Diretoria Colegiada RDC 49/2013 que regulamenta o setor. Segundo eles, as normas são inadequadas na medida em que não têm um tratamento diferenciado para as distintas escalas de produção.
No mês de junho de 2015 foram lançados dois instrumentos legais pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), que podem alterar completamente o que hoje entendemos sobre a legislação para agricultura familiar, povos e comunidades tradicionais. O primeiro é o decreto 8471 (MAPA) que regulamenta agroindústria artesanal para bebidas e produtos de origem animal. O outro é a Instrução Normativa 16 (IN 16 de 23 de junho de 2015), que normatiza a agroindustrialização de produtos de origem animal nos estabelecimentos de pequeno porte. A partir da sua assinatura dos dois instrumentos o governo tem um prazo estipulado de 180 dias para sua regulamentação.
“Como os processos no MAPA têm ocorrido de maneira pouco participativa, depende agora do empenho de governo e sociedade estabelecerem espaços de diálogo, a exemplo da RDC 49/ANVISA, que buscou uma construção participativa e consensual entre os atores envolvidos”, disse Noleto.
Quais os principais entraves que os agricultores familiares enfrentam em relação às normas sanitárias?
É um conjunto de entraves que acaba atrapalhando ou dificultando o desenvolvimento de vários empreendimentos comunitários. A maior dificuldade é em função da inadequação das normas para pequena escala de produção. Todas foram elaboradas pensando em grandes indústrias. O modelo brasileiro é espelhado no americano, que preza muito pela estrutura e excessiva pasteurização ou esterilização do ambiente e dos equipamentos envolvidos no processo. É importante, mas as boas práticas adotadas pelas comunidades possibilitam fazer produtos de qualidade em ambientes às vezes não tão grandes ou estruturados como exige a legislação.
Temos também um problema muito sério com os fiscais da vigilância sanitária e do Ministério da Agricultura (MAPA), que não têm um olhar diferenciado e sensibilidade para lidar com agroindústrias comunitárias. Tem fiscais mais sensíveis e outros menos, mas no geral eles vão com o poder de autuar e olhar o que está errado. Esses órgãos são muito punitivos e pouco orientativos, talvez isso seja um ponto político importante para batalhar.
Uma alegação da vigilância sanitária para que produtos da agricultura familiar não sejam regularizados é a falta de conhecimento sobre o processo de produção, que gera falta de confiança para o consumo. O problema é que o desconhecimento é causado justamente pela desregulamentação do setor. Se houvesse realmente um processo de inclusão social e produtiva, seria possível identificar e acompanhar a produção que é oferecida, atualmente, de maneira completamente desorganizada pela inoperância do estado.
Outra questão está associada ao acompanhamento técnico e preventivo da produção primária, especialmente para produtores familiares, também negligenciado pelo estado, que faz com que pequenos produtores rurais tenham sua produção com baixa credibilidade frente aos órgãos que regulam o beneficiamento da produção. Porém, a grande indústria coleta e beneficia grande parte desta matéria-prima, principalmente de origem animal (carne e leite), que é regulamentada pelo Ministério da Agricultura (MAPA). Quer dizer, em razão da baixa credibilidade da agricultura familiar, imposta por alto padrão tecnológico, a grande indústria obtém produtos de qualidade a baixos custos, pois possui uma ampla rede de oferta de produtos, que de outra maneira é impedida de acessar o mercado formal.
E como os agricultores fazem para entender essas legislações?
Os empreendimentos têm uma dificuldade muito grande para entender o emaranhado e a complexidade dessas normas e como funcionam os diversos subsistemas. Parte dos produtos que são dos estabelecimentos de agroindústria é de competência de registro do MAPA: Produtos de origem animal (queijo, mel, carnes e embutidos); Bebidas, que inclui a polpa de fruta; E os Vegetais in natura. Todos os demais vegetais processados como geleias, doces e frutas desidratadas é de competência do SNVS (Sistema Nacional de Vigilância Sanitária), cujo o órgão central do sistema é a ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Porém, em razão da descentralização do sistema, estados e municípios executam e também regulam de maneira independente e complementar a legislação sanitária.
Então, existe uma duplicidade de órgãos que tratam do assunto, e como a agricultura familiar se viabiliza na diversificação da produção é muito comum que o mesmo empreendimento faça um doce, uma geleia e tenha polpa de fruta para os sucos. A rigor, ele teria de ter duas agroindústrias ou dois registros e as regras e olhares dos órgãos são diferentes.
O MAPA é bem estruturado, tem uma tradição, e existe uma dificuldade maior de diálogo em torno de propostas de mudança ou adequação das normas para o registro dos estabelecimentos. No ano passado passou-se a ter uma exigência do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), de que os empreendimentos que entregam polpa de fruta teriam de ter o registro do estabelecimento e isso praticamente inviabilizou cerca de 70% desse público. Estão numa situação delicada, porque a maioria se ancorava no mercado institucional público e fez com que esses empreendimentos parassem de entregar os impactando consideravelmente.
De alguns anos para cá um grupo de organizações, articuladas pelo ISPN (Instituto, Sociedade, População e Natureza) que está em Brasília, fizeram uma cartilha de normas e foram realizados seminários e encontros com a vigilância sanitária. Esse processo ajudou na construção da Resolução 49/ANVISA (RDC 49/2013). A Anvisa funciona como uma agência reguladora dos órgãos estaduais, todo o processo de agroindústrias de produtos vegetais é feito com a vigilância sanitária nos seus estados. A Anvisa, que é a agência nacional, regula e normatiza. Essa resolução 49 prevê uma condição diferenciada de registro do estabelecimento da agroindústria para agricultura familiar e a economia solidária. Tivemos a conquista da norma, que inclusive prevê a isenção de pagamento de taxa de registro para a agricultura familiar e a economia solidária para o micro empreendedor individual também. Porém, a prefeitura ou o estado precisa criar uma lei orgânica para isentar das taxas que são uma obrigatoriedade. Mas o importante é que a sociedade civil se mobilizou e subsidiou o governo para uma resolução que prevê que a vigilância sanitária, no registro de empreendimentos de agricultura familiar, deve fazer um olhar mais sensível em relação à escala.
Por que cada região tem suas especificidades locais e não dá para aplicar um padrão de controle nacional?
Porque é muito diferente você pegar uma agroindústria que processa milho durante 20h por dia e com jornada de vários funcionários, do que outra familiar que funciona duas vezes por semana. A dinâmica é diferente, então a resolução vem equacionar um pouco isso. Só que tem uma resistência muito grande dos técnicos nos estados, porque são formados com um olhar viciado para a indústria e são muito exigentes em relação às estruturas da agroindústria.
A resolução já está em vigor?
Está em vigor, e está em processo o treinamento dos técnicos para aplicá-la. A Anvisa publicou uma cartilha com a resolução comentada com uma série de recomendações. É importante dizer que muito do que se prevê nas normas sanitárias, que são exigidas tanto pelo MAPA como pela Vigilância Sanitária, o que está por trás é garantir a qualidade do produto e a saúde do consumidor. Então temos que ter muito cuidado no discurso, porque se tem um problema com qualquer produto dentro dos cuidados mínimos necessários vai queimar o filme de todo o coletivo. Precisamos continuar com olhar rigoroso para que as condições de higiene sejam muito bem controladas. O nosso embate tem que ser para que a vigilância consiga perceber que em pequenas unidades é possível produzir produtos diferentes e de qualidade numa mesma estrutura. Hoje é impossível uma agroindústria processar mel e outros tipos de coisas, o MAPA não permite.
Existe muito mito por parte da sociedade civil, acho que estabelecemos um olhar sobre a vigilância sanitária preconceituoso e a questão do registro de estabelecimento não é uma coisa difícil de superar. O problema é com o MAPA: a lei que o estabelece como competente para registro de produtos de origem animal e as bebidas, é um decreto de 1952, muito antigo, e anexo a ela tem uma série de portarias que são instrumentos administrativos do próprio ministério. Vimos batalhando nesse espaço para unificar num único órgão os procedimentos para agricultura familiar e economia solidária. O ideal é que isso fosse feito na Anvisa, porque se trata de um problema de saúde pública e deveria estar dentro do Ministério da Saúde. O MAPA deveria cuidar mais de produção. O fato é que temos um ambiente totalmente adverso para esse tipo de mudança, o MAPA não quer largar o osso, nós temos uma bancada ruralista extremamente forte, um congresso super conservador e dificilmente vamos conseguir avançar nesse tipo de mudança. Porque a disputa é de poder e o MAPA não vai querer perder esse controle. Apesar de que as regras hoje são ruins para os pequenos e para os grandes, não são boas para ninguém: é muita burocracia e muito caro.
Isso implica em custos e em tempo, no sentido de ter pessoas dedicadas exclusivamente a fazer esse acompanhamento de gestão, que para o pequeno é muito mais difícil.
Não só do administrativo, porque para produtos de origem animal é obrigatório que você tenha veterinário contratado dentro do estabelecimento durante todo o processamento. Se contratar um veterinário quando for abater um porco, por exemplo, inviabiliza para quem faz embutido. Você tem um profissional voluntário de alguma ONG que vai acompanhar, ou então é praticamente impossível. E tem que ter uma estrutura gigante, inclusive com laboratório, que é fora de realidade para o pequeno produtor. Nosso esforço se concentra em tentar ir aos poucos criando uma consciência no movimento para que essa pressão seja cada vez maior. No coletivo que citei a gente já teve algumas reuniões com o MAPA e é consenso que está ruim. O ministério reconhece isso só que existe um debate lá dentro num nível técnico muito favorável às mudanças, mas no nível político não.
Temos que centrar nalguma estratégia de incidência política para ir criando por dentro do MAPA, a partir desses técnicos sensíveis, propostas para devagarzinho ir galgando essas mudanças. Grupos defendem que a competência das agroindústrias familiares passe para o Ministério do Desenvolvimento Agrário, mas o próprio consultor do órgão nesse tema que ajudou a elaborar a lei do SUASA e foi uma conquista que comemoramos, embora os resultados na prática não tenham se efetivado por uma série de razões, reconhece que não tem estrutura para assumir toda a parte de inspeção sanitária. As delegacias estaduais de agricultura familiar do MDA têm no máximo um delegado e dois ajudantes, e para você tratar do assunto a nível nacional precisaria de uma mega estrutura. Eu defendo que vá tudo para a vigilância sanitária, e incidir para que lá tenha profissionais específicos para lidar com a agricultura familiar e não o mesmo fiscal que trabalha nas indústrias. Um profissional que tenha um olhar mais adequado, inclusive com equipes multidisciplinares: antropólogos, sociólogos e outros profissionais que não engenheiros de alimentos, nutricionistas ou químicos. Pessoas com um olhar mais sensível para essas realidades e a diversidades.
(*) Fotos: Bento Viana/ISPN.