Está previsto para o próximo mês de junho o lançamento do Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo) 2024-2027. O documento, que vem sendo elaborado pelo governo federal em diálogo com representantes de organizações da sociedade civil, apresenta ações a serem realizadas no período. Mas o que é o Planapo e por que o poder público deveria priorizar a implementação de políticas públicas que apoiam a agroecologia no país?
Em novembro do ano passado, o 12º Congresso Brasileiro de Agroecologia (CBA) reforçou e atualizou as análises que apontam, há décadas, como os sistemas alimentares convencionais geram graves problemas ambientais, promovem dietas não saudáveis e atuam diretamente na manutenção de uma sociedade injusta e desigual.
“Seguimos assistindo na segunda década do século XXI à expulsão dos povos indígenas, povos e comunidades tradicionais e comunidades camponesas para a expansão das monoculturas voltadas à exportação. O poder das elites predatórias se aprofunda junto com a concentração de terras e das riquezas”, ressalta um trecho da carta política do 12º CBA, que contou com a participação de mais de 5 mil pessoas. A saída, conforme destaca o documento, passa pela urgência da democratização dos sistemas agroalimentares como condição indispensável para enfrentar a crise socioecológica que se aprofunda e que está levando as sociedades ao caminho do colapso.
Diante dessa situação, o apoio à agroecologia torna-se algo estratégico e imediato, uma vez que ela é capaz de dar respostas a problemas de diferentes ordens e pode ser considerada um referencial técnico-produtivo, social, cultural e ambiental para transformar os sistemas alimentares.
De Norte a Sul do Brasil, iniciativas desenvolvidas pela agricultura familiar camponesa, povos indígenas, quilombolas e povos e comunidades tradicionais demonstram como é possível, a partir de seus territórios, construir sistemas alimentares mais sustentáveis, diversificados e solidários.
Parte dessas iniciativas está cadastrada na plataforma Agroecologia em Rede (AeR): um banco de dados com quase 5 mil registros que comprovam que a agroecologia pode desempenhar um papel decisivo para solucionar questões urgentes da sociedade brasileira, como o combate à fome e à insegurança alimentar, o enfrentamento à emergência climática e a promoção da saúde coletiva.
De acordo com o engenheiro agrônomo Paulo Petersen, coordenador da ONG AS-PTA e integrante da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), o desenvolvimento da agroecologia no país depende crucialmente de políticas públicas adequadas, pois elas serão fundamentais para garantir os direitos da população em áreas como saúde, alimentação, educação, meio ambiente, cultura, resiliência às mudanças climáticas, entre outras.
Paulo argumenta que o Estado brasileiro precisa deixar de direcionar os recursos públicos para as produções e sistemas econômicos que acentuam os problemas e passar a canalizá-los para a promoção de sistemas alimentares que dão respostas conjugadas a várias questões públicas. Para exemplificar, ele menciona que o estilo de produção agroecológica pode combater a fome com alimentos saudáveis, ao mesmo tempo em que enfrenta as emergências climáticas, protege a biodiversidade, reconhece e valoriza o trabalho das mulheres, gera renda e promove a saúde coletiva. “Essas agendas vão se articulando umas às outras, numa perspectiva de ganha-ganha; e não numa perspectiva dominante de que um setor econômico, movido pela acumulação de capital, gera efeitos negativos e externalidades negativas sobre outros setores, como a saúde, o meio ambiente e a cultura”, analisa.
O fomento à agroecologia
Em 2012, foi instituída no Brasil a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Pnapo), com o objetivo de contribuir para a melhoria da qualidade de vida da população por meio do uso sustentável dos recursos naturais e da oferta e consumo de alimentos saudáveis. O texto do decreto presidencial que instituiu a Pnapo demonstra que, desde a sua concepção, ela foi pensada para ser um mecanismo de articulação e adequação de políticas, programas e ações indutoras da transição agroecológica e da produção orgânica.
Entre as determinações previstas na legislação está a criação de duas instâncias para gestão da Pnapo: a Câmara Interministerial de Agroecologia e Produção Orgânica (Ciapo), composta por órgãos do poder público, tendo em sua composição atual 14 ministérios; e a Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Cnapo), que possui participação paritária com 42 integrantes, sendo 21 representantes de órgãos do governo e 21 da sociedade civil organizada.
A retomada da Pnapo e dos seus espaços de gestão se deu no início de 2023, com a eleição do presidente Lula, após ter sido desconstituída pelo governo Bolsonaro, em 2019. Paulo acredita que a recriação da Ciapo é essencial para recolocar a agroecologia em uma agenda intersetorial, ou seja, de funcionar como um espaço de confluência e convergência de variados setores da administração pública.
Já a recomposição da Cnapo possibilita a existência de um canal permanente e sistemático de diálogo entre sociedade civil e governo. “Evidentemente que a agenda da agroecologia não se resume à Cnapo. No entanto, ela tem essa vocação de articulação intersetorial, de entendimento de que a agroecologia não é um tema, mas um enfoque adequado para articular temas públicos e setores da administração governamental”, avalia Paulo.
A construção do Planapo
São essas duas instâncias – Ciapo e Cnapo – que têm a atribuição de elaborar, monitorar e avaliar o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo). O documento que está em construção corresponde a uma atualização das ações e números do Planapo II (2016-2019).
Segundo Flavia Londres, da secretaria executiva da ANA, o Planapo traça as estratégias, objetivos, metas e ações a serem implementadas para promover a agroecologia no Brasil. É um documento que resulta do exercício de buscar a complementação entre os diversos projetos, programas e políticas que são coordenados pelos diferentes setores públicos. Flavia explica que a elaboração do Planapo 2024-2027 contou com a contribuição de documentos produzidos por organizações e movimentos da sociedade civil, como a publicação “Políticas Públicas de Agroecologia na Boca do Povo”, produzida pela ANA após um processo de escuta e coleta de propostas junto a mais de 800 agricultoras/es, lideranças e organizações de todo o Brasil.
As propostas presentes no Plano são agrupadas em eixos estratégicos relacionados ao fomento de práticas coerentes com a agroecologia em todos os elos dos sistemas agroalimentares, que vão desde o apoio à produção agroecológica até a comercialização e consumo de alimentos. Também está prevista a promoção de ações voltadas ao manejo e conservação dos bens da natureza, à sociobiodiversidade, à construção de conhecimentos em agroecologia e à garantia do acesso à terra e aos territórios.
No processo de atualização do Planapo, busca-se ainda articular setores e iniciativas em curso que não estavam incorporados no Plano anterior, além de propor a criação de novas políticas públicas. Flavia conta que uma agenda que deve ser incorporada com mais ênfase no novo Planapo é a da saúde, pois há uma compreensão na Cnapo de que os sistemas alimentares têm um papel central nas ações desenvolvidas pelos ministérios e órgãos públicos que atuam na promoção da saúde coletiva.
Como exemplos de iniciativas desse setor que podem ser fomentadas pelo Planapo, Flavia cita o estímulo à aquisição de alimentos agroecológicos pelos equipamentos de saúde; o fomento à implantação de hortos medicinais; a criação de espaços de cuidados nas comunidades; a restrição ao uso de agrotóxicos; o incentivo às práticas tradicionais e de saúde popular, entre outras.
A importância do diálogo
Além da Pnapo, há no país um número significativo de iniciativas que mostram como o Estado brasileiro pode atuar diretamente nas demandas reais da população. Para se ter uma ideia, do total de registros presentes na plataforma Agroecologia em Rede, mais de 1.200 se referem a políticas públicas e legislações municipais e estaduais que promovem a agroecologia.
Essa diversidade de ações públicas reforça a relevância dos espaços de articulação entre os diversos setores que coordenam essas iniciativas, para que elas gerem resultados concretos nas realidades onde os sistemas agroalimentares são estruturados. “O caráter intersetorial dos espaços de gestão, aliado à abordagem integradora da agroecologia e à sua capacidade de dar respostas a múltiplos problemas sociais e ambientais, é essencial nos processos de elaboração e implementação das políticas públicas”, justifica Flavia.
A participação social na construção e no monitoramento dos programas e políticas públicas é outro aspecto essencial para garantir que os instrumentos implementados sejam mais assertivos. É no território que as agricultoras e agricultores familiares, os povos indígenas, os quilombolas e os povos e comunidades tradicionais acessam as políticas públicas. Além disso, são esses os sujeitos sociais que têm mais conhecimento e legitimidade para apontar as reais demandas e os melhores caminhos para atendê-las.
Flavia ressalta que um aspecto que favorece a participação social nos espaços de gestão das políticas públicas é a existência das redes de agroecologia, em diversas regiões do Brasil, com conhecimento acumulado no planejamento e na realização coletiva de ações. Para ela, essas redes precisam ser acionadas – e elas próprias apoiadas – para que possam continuar desenvolvendo a tarefa de articulação nos territórios e de alinhamento entre as políticas nacionais, estaduais e municipais.
O Programa Ecoforte, que foi criado em 2013 no âmbito da Pnapo, evidencia o acerto da estratégia de apoiar projetos elaborados pelas próprias redes, a partir das demandas identificadas em seus territórios. “O Ecoforte é um exemplo de grande inovação institucional da Pnapo, pois permitiu fomentar tecnologias sociais adaptadas às diferentes necessidades e aos diferentes contextos sociais, ambientais, econômicos, culturais e políticos”, lembra Flavia.
A transversalidade da agroecologia
Sarah Luiza Moreira, integrante do Grupo de Trabalho (GT) Mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia, afirma que estamos em um momento estratégico para pautar a urgência de o governo federal assumir a agroecologia como uma agenda central, capaz de melhorar a qualidade de vida e a saúde não só dos povos que vivem no campo e que produzem alimentos, mas de toda a população brasileira. “Chegou a hora de termos políticas estruturantes e fundamentais para, de fato, implementar e fortalecer a agroecologia que é construída pelos sujeitos nos seus territórios; pelas mulheres, pelos homens, pelas juventudes, pelos povos e comunidades tradicionais, pelos povos indígenas, pelos povos quilombolas.”
Sarah reforça ainda a importância de assegurar que a pauta da agroecologia seja tratada de forma transversal e apareça de forma contundente em outras agendas institucionais, como nas políticas e nos planos nacionais de segurança alimentar e nutricional; de abastecimento alimentar; de mudança do clima, entre outros.
No entanto, Sarah faz uma ressalva que diz respeito à necessidade de o poder público assumir o compromisso de financiar e garantir recursos para implementação das políticas que fomentam a agroecologia. “Atualmente, temos um orçamento muito limitado para a agroecologia, principalmente quando comparamos com o que é disponibilizado para o agronegócio. É muito relevante elaborarmos os planos de agroecologia, de abastecimento alimentar, de adaptação às mudanças do clima de forma articulada, com diálogo entre eles. Mas se esses planos não tiverem recurso ou se tiverem um orçamento baixo, não serão de fato implementados, não chegarão de fato aos territórios e à vida dos povos”, alerta Sarah.
Texto de Marcelo Almeida, da Articulação Nacional de Agroecologia e foi originalmente publicado na Mídia Ninja. Para acessar, clique aqui.