Por Verônica Pragana / ASPTA

Qual o papel do acesso ao conhecimento para a mudança de vida das famílias agricultoras? Como o envolvimento de pessoas em associações comunitárias pode transformar a vida de toda a família? Em que medida saber mais da história da comunidade onde vive contribui para a qualidade de vida de cada família da localidade?

Para responder a estas perguntas, uma história. A da família de Maria Mônica Pereira Lima, 39 anos, e José Ailton de Oliveira Nunes, 49, mais conhecido como Deda. Eles têm três filhos: Tamires (21), Alisson (19) e Rodrigo (15) e moram no Sítio Araçá, uma comunidade rural do município de Arara onde vivem 90 famílias, no território da Borborema Agroecológica, no Semiárido da Paraíba.

No município, em que 27% das famílias moram, cultivam alimentos e criam animais em menos de 2 hectares, Mônica, Deda e os filhos é uma delas. Eles vivem numa área de cerca de 1,7 hectare. E esse pedaço de chão é cedido a eles pela família de Mônica e Deda, o que restringe a  autonomia para tomada de decisões importantes sobre o uso do espaço.

Desde que casaram, Mônica e Deda acessaram políticas públicas que melhoraram a moradia e o acesso à água e à sementes crioulas para plantio. Todas estas conquistas foram mediadas pelo Sindicato dos/as Trabalhadores/as Rurais de Arara, que desde 2003 faz parte de um coletivo que agrega 13 sindicatos para a construção de um projeto político de desenvolvimento da região a partir da agricultura familiar agroecológica e da convivência com o Semiárido. Este coletivo é o Polo da Borborema.

E assim a família começa a acessar recursos para melhoria do roçado e do curral do gado pelo Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). 

Políticas públicas e participação social – Em 2015, quando acessam o segundo financiamento, participam do Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2), concebido e executado pela Articulação Semiárido (ASA), e constroem uma cisterna calçadão, tecnologia para armazenar 52 mil litros de água para produção de alimentos.

Em 2018, no mesmo ano em que Mônica desiste de criar galinha porque elas comiam as plantações dos vizinhos, os filhos mais velhos entram no Fundo Rotativo Solidário (FRS), organizado pelo Polo da Borborema e AS-PTA, para receber ovelhas de raças nativas. Neste mesmo ano, as mulheres da casa participam pela primeira vez da Marcha pela Vida das Mulheres e pela Agroecologia, em sua nona edição.

Crédito da foto: Nirley Lira/Arquivo AS-PTA

A construção da linha do tempo do agroecossistema de Mônica, Deda e filhos, feita em 2023, permite compreender suas estratégias para ampliar a base de recursos e como as políticas públicas e as dinâmicas do Polo da Borborema resultaram em mudanças positivas para a família. 

Em 2021, a comunidade Araçá, onde vivem, passa a fazer parte da dinâmica das Comunidades Resilientes, um projeto que foca no estudo coletivo da comunidade para conhecer sua trajetória, suas formas de auto-organização e como e quais políticas públicas chegaram até eles e quais impactos trouxeram.

Este olhar para a história comunitária, feito junto à comunidade, tende a reativar processos de construção coletiva que estavam adormecidos. Um dos mecanismos importantes para isso são os intercâmbios com outras comunidades do território.

Em 2022, representantes de Araçá, Juá e Jabuticaba fazem uma visita de intercâmbio à comunidade de Benefício, no município de Esperança, que também faz parte da área de atuação do Polo. Nesta ida a Benefício, as visitantes se animaram para criar um Fundo Rotativo Solidário só para as mulheres, que começa com o financiamento de fogões ecológicos.

Mônica entrou neste FRS e, desde 2022, recebeu o fogão, que funciona com economia de lenha e emissão de fumaça acima do telhado da casa, evitando a inalação por quem cozinha que, em geral, são as mulheres. Esse tipo de fogão também não aquece a região do ventre de quem faz a comida, o que é muito importante para a saúde da mulher.

Em 2023, o quintal da família é ampliado com o plantio de mudas ornamentais e hortaliças. “Essa intensificação foi provocada pela participação de Mônica em vários momentos de formação e mobilização que aconteceram em Araçá. Ou seja, são mudanças que foram provocadas a partir de uma estratégia de ação comunitária”, atesta Nirley Lira, da equipe técnica da AS-PTA.

Crédito da foto: Nirley Lira/Arquivo AS-PTA



O que eles cuidam em 1,7ha  – No diagnóstico do agroecossistema da família – uma das ações do projeto executado pela Rede ATER NE e apoiado pela Porticus – os/as assessores/as técnicos/as e a família listaram sete subsistemas em menos de dois hectares de terra: hortaliças e plantas medicinais; ovinos; roçado com nove tipos de culturas; bovino; frutíferas; plantas ornamentais e a matinha, que é uma área que a família preserva e de onde extrai, principalmente, sementes de gliricídia e moringa para vender para o Sindicato.

“A gente colocando tudo ali, [percebemos] como tinha coisa que a gente não prestava atenção. E como a renda é maior. Quando Nirley (assessora técnica da AS-PTA) falou: ‘Tu tem uma farmácia, uma mercearia e ainda faz trocas de alimentos, doa, vende, eu fiquei admirada”, relata Mônica.

A partir deste olhar para a trajetória da família junto ao seu agroecossistema e como ele foi sendo transformado a partir do acesso da família a políticas públicas e ao conhecimento, mobilizado nas reuniões comunitárias, é possível compreender melhor a lógica das escolhas da família na gestão dos espaços e também construir junto a ela um plano de ação para os próximos anos.

Mônica quer ampliar a produção de hortaliças e de mudas ornamentais e voltar a criar galinhas. “Eu quero um canto pras galinhas. Um espaço bom pra elas ficarem bem à vontade. Preciso de tela e de fazer uma casinha”, planeja.

Conhecer o passado para dialogar com o presente e o futuro – Neste jeito de fazer a ATER, o passado do agroecossistema familiar ganha relevância. “Conhecer a história da família e suas estratégias é fundamental para a assessoria compreender como o agroecossistema está estruturado hoje e, portanto, possa contribuir para a família refletir sobre fragilidades e potencialidades, não só do seu agroecossistema, mas também da comunidade e do território”, sustenta Denis Monteiro, assessor da AS-PTA.

Segundo ele, esta reflexão é fundamental para projetar o futuro num ambiente de diálogo entre família, assessoria e as lideranças que atuam no território. No caso, da Borborema Agroecológica, as lideranças são sindicais. 

“As equipes técnicas e os dirigentes sindicais devem conhecer e valorizar a história e os sonhos das pessoas e, junto a elas, levantar e discutir ideias sobre inovações técnicas e organizativas. No caso de Mônica, por exemplo, ampliar o quintal produtivo e melhorar a infraestrutura para a criação de galinhas certamente vai resultar num aumento rápido da produção tanto para o consumo quanto para a venda nos mercados do território. Mas essa proposta, que parece bem simples, talvez não tivesse sido elaborada sem um diagnóstico aprofundado do agroecossistema, feito de forma participativa e com atenção especial às mulheres”, acrescenta.

No método Lume, após os momentos de construção da linha do tempo, travessia na propriedade e desenho do mapa com os fluxos de produtos e insumos, é feita a análise de sustentabilidade do agroecossistema. Tal exercício permite identificar fragilidades e potencialidades e qualifica a construção participativa de um plano de inovação. A análise da base de recursos de Mônica e família mostra, por exemplo, como a boa capacidade de trabalho da família é uma potencialidade e como é possível ampliar a produção de alimentos para a família e para a venda nos mercados territoriais.

O jeito de ver determina a ação – “A realidade da agricultura familiar é muito complexa e precisa de um olhar sistêmico”, assegura Luciano Silveira, agrônomo da AS-PTA. Essa ‘visão panorâmica’ é possibilitada a partir do método Lume, desenvolvido pela AS-PTA para ler os agroecossistemas das famílias. “Com o Lume conseguimos alumiar realidades. Olhando para elas de forma coletiva, conseguimos construir conhecimentos capazes de transformá-las”, anuncia o agrônomo.

“O papel que o conhecimento tem é central para empoderar pessoas e construir uma identidade comum de famílias agricultoras do Semiárido”, acrescenta Roselita Vitor, da coordenação política do Polo da Borborema.

Estudo da Rede ATER NE – Por entender que a construção coletiva do conhecimento está na centralidade de uma ação de Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER), a Rede ATER Nordeste de Agroecologia realizou uma pesquisa-ação usando o método Lume como referência para a assessoria técnica às famílias e comunidades rurais.

Doze organizações que atuam em seis estados do Nordeste brasileiro – Bahia, Sergipe, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará –  integram a Rede ATER que completa, em 2024, 20 anos de existência.

Não é em vão esse empenho da Rede ATER NE em aplicar um método desenvolvido para enxergar a complexidade da agricultura familiar. “O enfoque sistêmico adotado no Lume reconhece as economias não monetárias, seja das produções para autoconsumo e doações nas comunidades, seja da produção de insumos pelas próprias famílias. Permite também entender que a renda monetária gerada com a produção na agricultura camponesa não está restrita a um ou dois produtos, mas em geral é formada pela venda de uma grande diversidade de alimentos”, explica Denis.

No arredor de casa, por exemplo, há uma variedade enorme de alimentos e plantas de uso medicinal. E, a partir destes quintais, há uma movimentação econômica não monetária. É o tempero que deixa de ser comprado, assim como o remédio para doenças corriqueiras. É o que se doa para os vizinhos e que estimula o ganho de outros produtos que a família necessita.

A ATER nos moldes atuais – O estudo da Rede ATER NE foi empreendido para criar uma alternativa ao desenho atual da ATER, ainda marcado por uma visão difusionista e que precisa avançar muito para que o enfoque agroecológico seja de fato adotado pela política pública.

Nos editais para contratação das organizações que vão executar as chamadas públicas de ATER, estão definidos os tempos de cada fase no atendimento às famílias, assim como a quantidade de famílias que cada assessor técnico deve acompanhar.

“No desenho do edital das chamadas públicas de ATER, o tempo destinado para as atividades de cadastro e diagnóstico da unidade familiar de produção (que se assemelha a agroecossistema) é de apenas duas horas. Para que o diagnóstico se traduza numa leitura compartilhada entre a assessoria técnica e os membros da família agricultora acerca das limitações e potencialidades do agroecossistema, seria necessário, no mínimo, de quatro a seis horas”, aponta Luciano.

Além disso, o cadastro e o diagnóstico devem seguir um formulário de 13 páginas, que acaba tomando todo o tempo do/a assessor/a e da família, em detrimento do diálogo que deveria acontecer. Como se não bastasse, esses dados, na maioria das vezes, vão para um banco de dados e nunca mais são acessados pelas organizações executoras da ATER nem pelas famílias.

“Mais do que encher formulários, é preciso investir em instrumentos metodológicos capazes de levantar informações úteis de forma participativa e, portanto, dialógica. A Rede ATER Nordeste e outras redes da sociedade civil, como a Articulação Semiárido, têm acumulado muito conhecimento que deve ser valorizado pelo governo federal e pelos governos estaduais na construção de uma política pública de ATER inovadora, orientada pelos princípios da agroecologia”, explicita Denis.

A construção do conhecimento agroecológico – Para a agroecologia, só faz sentido esta construção se as famílias forem envolvidas de forma ativa. Trata-se de um conhecimento pautado na vida real das famílias, construído quando se observa a passagem do tempo e do acesso delas a espaços sócio-organizativos, como sindicatos e associações comunitárias, e a políticas públicas. 

“A concepção da construção do conhecimento a partir da agroecologia se baseia numa abordagem metodológica que se confronta com o modelo de ATER convencional apoiada numa versão difusionista do conhecimento. Nela, os extensionistas se portam como difusores do conhecimento”, diferencia Luciano Silveira, da AS-PTA.

“A nossa metodologia é pensada para mobilizar a sabedoria local. Quando esse conhecimento se articula com o conhecimento que vem da ciência, surgem os processos de inovações metodológicas e tecnológicas”, completa ele que representa a AS-PTA e a Rede Ater na Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (CNAPO), instância de participação social para elaboração e monitoramento da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO) e de seu principal instrumento, o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo).