Muitas famílias agricultoras que vivem no Semiárido brasileiro tiveram a vida transformada a partir do acesso às políticas públicas de Assessoria Técnica e Extensão Rural (Ater). Entre elas, está a família de Cíntia Graciela Santos e do irmão Gilberto dos Santos, da Comunidade Tradicional de Fundo de Pasto Esfomeado, em Curaçá-BA. A comunidade tem mais de 80 famílias, dessas, em torno de 60 já receberam, através de projetos diversos, acompanhamento da Ater de 2011 até os dias atuais.
Desde o primeiro trabalho de assessoria que chegou na comunidade, foi criado um plano de desenvolvimento sustentável juntamente às famílias. Esse documento continua sendo utilizado por elas e está servindo como um guia para as ações na localidade. Além das transformações comunitárias, a Ater proporcionou ainda mudanças de hábitos dos/as agricultores/as, que potencializam a Convivência com o Semiárido.
“A minha criação era muito pequena, o meu manejo era errado, eu estava naquele período que eu não tinha nenhuma assessoria técnica, não tinha nenhum curso técnico voltado a isso, eu trabalhava em outra área. Fui totalmente orientado, eu cresci mais ou menos uns 300% o volume dos meus animais. Isso é interessantíssimo; hoje eu tenho umas 40 matrizes, um total de 70 a 80 animais; eu faço a vermifugação correta, eu faço o manejo correto. Então, não só na caprinovinocultura, como também em todos os círculos (áreas das atividades produtivas), no sistema de preparar-se para a estiagem, a utilização da palma forrageira (…)”, enfatiza o agricultor Gilberto.
Da mesma forma, a Cíntia viu também muitas transformações, principalmente porque a família acessou diversas tecnologias sociais, a partir do acompanhamento técnico na comunidade. “Eu já tenho aqui várias tecnologias como essa cisterna de produção e de consumo humano, tenho o reúso, que é um projeto muito fantástico, que hoje eu tenho várias frutíferas, palma e capim e vou ter bastante futuramente desse reúso”. A partir de todas essas mudanças, a partir da Ater, Cíntia avalia que haveria mais avanços com uma assessoria ainda mais voltada à escuta das necessidades de cada família e comunidade.
Esse olhar e desejo de uma assessoria técnica que seja construída de forma mais participativa e a partir das comunidades, com seus saberes, necessidades e potencialidades, foi aguçado em uma “Pesquisa-Ação” realizada na família de Cíntia e Gilberto. No estudo familiar, com o método LUME , foi possível identificar muitos elementos que até então não eram percebidos.
“Nós nos conhecemos nesse estudo, né!? Porque tem coisas que a gente conseguiu se espelhar mais, foi a mesma coisa da gente olhar para o espelho. A gente identificou várias coisas, inúmeros itens a melhorar, se fortalecer mais como família, é um conjunto. Um depende do outro”, destaca Gilberto.
Como resultado desse “olhar para o espelho”, pontuado por Gilberto, ele e a irmã, Cíntia, puderam entender a importância de ter estratégias, por exemplo, para passar períodos de estiagem com mais tranquilidade. “Tem um palmal aqui, depois disso (informações percebidas com o estudo, por exemplo da interligação entre a produção de forrageiras e a criação animal) a gente aumentou por conta que a gente estava com déficit acerca de alimentação. É tanto que a gente passou o período de estiagem um pouco sossegado; realmente, a gente não comprou nenhuma ração. São vários itens, não dá pra descrever, mas a gente melhorou bastante”, complementa.
Foi também com essa visão mais ampla da área, entendendo cada espaço de produção como parte de um agroecossistema, que Cíntia avaliou a necessidade de compreender a importância da biodiversidade existente no lugar; além de potencializar o quintal produtivo.
“A gente estava capengando. Esse estudo veio muito a calhar para mim, para minha família, porque eu tenho uma cisterna de produção e tem o quintal produtivo e eu não estou produzindo nenhuma hortaliça, no momento, porque eu tenho uns problemas com uns camaleões aqui. Só que nesse estudo eu vi: ‘Meu Deus, eu tenho a tecnologia, eu vou deixar de plantar, de ter uma comida de qualidade para mim e para minha família, até para meus animais, por que um bichinho está comendo? Vai servir pra ele também!’. É uma autoavaliação do porquê não estar fazendo aquilo”. Cíntia enfatiza ainda que essa metodologia precisa ser adotada em outras ações com Ater. “Então, esse estudo do LUME, espero que seja visto pelas entidades, pelas pessoas que estão aí apoiando os projetos como estudo de grande importância para todas as famílias que foram estudadas”.
Protagonismo e engajamento da Juventude na comunidade
Outra família que participou do estudo com o LUME em Esfomeado, foi a da jovem Natália Cardoso (18). A construção da linha do tempo, que evidencia diversas informações históricas, chamou muito a atenção da jovem estudante. “Não sabia o que tinha acontecido, no passado, na comunidade, e viemos saber através desse projeto e o que minha mãe passou, que nós não sabíamos”.
Na comunidade tem a Associação de Mulheres em Ação da Fazenda Esfomeado (Amafe), que atua desde setembro de 2013 com o beneficiamento de diversos produtos. A entidade é um marco importante, principalmente, porque passou a fortalecer a comunidade e o trabalho das mulheres. Um dos resultados da análise dos dados com a família da Natália apontou a necessidade de maior engajamento delas na Amafe e em organizações/espaços de discussões sobre a defesa do território tradicional de Fundo de Pasto.
Esse é um desafio que, enquanto jovem, ela já está trabalhando para superar. Natália, está na metade do curso técnico em Agropecuária na Escola Família Agrícola de Sobradinho (EFAS) e ainda participa de outros espaços, como o curso de formação de jovens lideranças, realizado pelo Instituto Regional da Pequena Agropecuária (Irpaa), em Juazeiro.
“Antigamente, eu nem saia daqui, depois que eu comecei a sair (estudar, participar de atividades diversas), comecei a ver um caminho melhor para minha família e para mim. E eu queria passar isso para os outros jovens da comunidade e a Amafe começou com uma produção muito boa, eu acompanho muito, e até o meu projeto da EFAS vai ser ligado com elas, com os produtos delas”, enaltece a jovem Natália.
Apontando para as possibilidades no futuro, Natália conta que planeja investir em apicultura e permanecer junto à sua família. “Via lá (na EFAS) o povo mexendo (manejo das abelhas); muito interessante! Me interessei, comentei com minha mãe e o técnico da Ater (que assessora outras famílias na comunidade)”.
Esse mesmo horizonte, de jovens buscando geração de renda, a estudante gostaria que os/as demais da região de Esfomeado também vislumbrassem. “Muitos jovens aqui na comunidade precisam abrir um pouco a visão para, no futuro, poder construir sua própria renda e não sair da sua comunidade para a cidade”, destaca.
OBS: sugestão de legenda para inserir em uma foto aqui nessa parte do texto
Foto: A jovem Natália, ao lado da cisterna de produção, na área da família. Local onde pretende criar abelhas.
A família de Natália atualmente não é acompanhada por nenhum projeto de assessoria técnica, por isso ela ressalta a necessidade da ampliação das políticas públicas voltadas para a agricultura familiar. “O governo deve olhar mais para os pequenos agricultores, não para os grandes, de grande porte igual esses fornecedores de produção para fora, e sim para os que estão na comunidade construindo sua própria sobrevivência”.
Ater para a comunidade
Em Esfomeado, também foi realizado um estudo comunitário com o método LUME. Uma das lideranças comunitárias, Cristiane Ribeiro, destaca a importância da assessoria técnica na vida dela. Mas, faz ressalvas de que ainda é preciso avançar muito mais.
“Sou acompanhada pela assessoria técnica desde 2011, 2012, de uma forma muito direta. Então, as transformações que eu tenho hoje, o conhecimento que eu tenho hoje, a Ater é a responsável. Agora, a gente precisa modificar essa metodologia. A esperança é essa, de que essa metodologia de aplicação ‘das Ater’ venha a partir da escuta das famílias, a partir do trabalho dos perfis das atividades da agricultura familiar”, defende Cristiane.
Esse processo de escuta das famílias, da comunidade, pontuado por Cristiane, garantiria um trabalho de assessoria técnica muito melhor. “A partir do momento que se cria a Ater no sentido contrário, que sai da comunidade para quem executa, quem elabora, vai ser uma Ater diferente, vai atender essas famílias de forma mais consistente; o sistema de aprendizado vai ser outro”.
Para exemplificar esse apontamento de Cristiane, geralmente acontece uma escuta, mas que é parcial, porque as atividades previstas em um projeto já vêm definidas; acontece apenas uma adequação dos temas. Embora seja importante, o anseio é que as ações sejam pensadas após ouvir as famílias e as comunidades.
Importância dos aprendizados com o método LUME
Se os estudos utilizando o método LUME foram tão significativos para as famílias e comunidades que participaram da Pesquisa-Ação, não seria diferente com as entidades que realizaram. Além de todo acúmulo das experiências do Irpaa com projetos de Ater, a Instituição agregou diversos aspectos da metodologia. Por exemplo, o Irpaa utilizou análises quantitativas e qualitativas do LUME para enfatizar os resultados alcançados com a Ater Agroecologia, um dos projetos executados recentemente, com o apoio do Governo da Bahia.
“A gente sistematizou informação de 10% das famílias e produzimos um livro. Tem muito desses estudos (métodos), muito dessas práticas dessa pesquisa-ação em rede (aprendizados), em que o Irpaa participa junto à Rede Ater Nordeste”, destaca o coordenador institucional do Irpaa, Clérison Belém. Essa escolha evidencia a importância do LUME para potencializar o trabalho de sistematização de conhecimentos, realizado pelas instituições do Semiárido, e que são disponibilizados para o público em geral.
Se os conhecimentos proporcionados pelo LUME podem contribuir para mudar paradigmas nas políticas públicas, também influenciaram no trabalho das equipes da Ater do Irpaa.
“Os/as técnicos/as puderam se formar e melhorar sua abordagem junto às famílias e dar visibilidade a muitas questões que são ocultas no dia a dia, que não têm visibilidade; as economias que não são vistas pelos métodos convencionais (de assessoria técnica), as relações que fortalecem as comunidades e que não são, muitas das vezes, vistas e valorizadas. Então, a equipe conseguiu ver os resultados da Ater a partir das análises dos agroecossistemas, das comunidades, muito além dos aspectos produtivos, mas os aspectos sociais, organizativos, de reciprocidade”, ressalta.
Clérison enfatiza ainda que “o método dá luz a muitas questões que não vêm no debate, assim como a divisão dos trabalhos, a relação entre a comunidade e o agroecossistema, em que tudo está conectado”.
Assim, esses outros elementos evidenciados também são essenciais para demonstrar resultados mais amplos para as instituições financiadoras de projetos com Ater.
“Na maioria das vezes, os financiadores só querem resultados econômicos; mas, tem vários outros resultados na qualidade de vida das famílias, no meio ambiente, no social, no organizativo, que tem mais efeito na vida das famílias do que propriamente um único indicador de renda. A gente também percebeu que essa análise dos agroecossistemas fez com que as famílias valorizassem mais ainda as suas atividades e suas relações nas comunidades”, complementa Clérison.
Que Ater as famílias querem?
Geralmente, quando se pergunta às famílias agricultoras o que poderia melhorar nos projetos com a Ater agroecológica, a resposta é unânime: diminuição da quantidade de famílias acompanhadas por cada técnico/a e também que tenha investimento de recursos financeiros para a produção, o chamado fomento.
“O tempo é muito pouco para uma família, tem que ter uma abertura maior; além da teoria, uma prática; técnico mostrar a realidade pro produtor, o agricultor. Eu acho que é muito grande o número de famílias (atendidas por cada técnico/a)”, enfatiza Gilberto.
Em complemento, Cristiane também apontou a importância de uma Ater que esteja aberta para potencializar o trabalho das famílias agricultoras e que isso pode ser feito através de fomento, com a “aplicação de políticas públicas que melhorem esse agroecossistema”, defende.
Nesse mesmo sentido, Clérison reforça a necessidade de recursos para as famílias. “A gente faz a construção do conhecimento com as famílias, elabora propostas produtivas, mas na hora do investimento, falta muito essa fonte. Então, uma fonte de apoio ao fomento para essas famílias potencializa muito o serviço de assessoria técnica”.
Clérison frisa ainda as demais reivindicações das famílias (mais escuta, mais ações e visitas das equipes, fomento), que também são as mesmas das entidades executoras dos projetos com Ater. Inclusive, o aspecto da redução de assessorados/as por técnico/a, impactaria positivamente nos resultados. “As vezes tem família que passa de dois a três meses para ser visitada, então se a gente tem uma frequência maior, vai ter mais resultados. Outra questão é a desburocratização nos sistemas; tem projetos que você tem que alimentar de dois a três sistemas, tudo isso faz com que o técnico fique mais distante do campo”.
As reivindicações não ficam apenas nos anseios individuais das famílias de Esfomeado, o fator “coletividade” também foi um dos destaques. Elas almejam ações com um olhar mais amplo para as necessidades das comunidades, com as questões coletivas, principalmente do acesso à água para consumo e para produção. “É fundamental fortalecer o coletivo, projetos voltados para todos, políticas públicas”, ressalta o agricultor Gilberto.
“A política de água precisa ser pensada! A melhoria do que já tem e a construção das novas tecnologias que garantem mais tempo com água, por exemplo, os barreiros trincheira, que já são pensados, que tem um tempo de evaporação menor e isso vai estar contribuindo com a melhoria, dentro dos desafios que a comunidade tem no quesito água”, reivindica Cristiane.
A proposta de Cristiane é reforçada pela jovem Natália: “Muitas coisas faltam para a comunidade, um barreiro trincheira que não tem (coletivo), para os animais beberem; muitos agricultores usam a cisterna de consumo para dar água para os bichos no tempo da estiagem”.
Na área da família de Cíntia e Gilberto, assim como em outras de Esfomeado e tantas comunidades do Semiárido, além das cisternas, tem apenas um pequeno tanque para armazenamento de água da chuva, que não dura até o período de estiagem prolongada.
No monitoramento que eles/as fizeram, de novembro de 2023 até a primeira quinzena de fevereiro, choveu mais de 500mm. Abundância de água que poderia abastecer os reservatórios comunitários, barreiros e mais cisternas de produção, uma das principais reivindicações.
Ater comunitária e com diversidade
A comunidade de Esfomeado é um excelente exemplo para ilustrar a importância e a força da coletividade. Por ter um modo de vida tradicional de Fundo de Pasto, com o cuidado compartilhado do território, entre outros. Mas, também porque as experiências e necessidades reveladas nos depoimentos das famílias evidenciam uma outra carência que precisa ser considerada em editais públicos de projetos com Ater: a diversidade de ações. É urgente possibilitar chamadas específicas para grupos como juventude; de recuperação ambiental, a exemplo do Recaatingamento; para comunidades tradicionais; além de ampliar atividades com as mulheres.
“A gente percebe que a Ater da Convivência com o Semiárido, com base agroecológica, precisa não individualizar muito as ações e focar mais em ações coletivas, porque fortalece o grupo e fortalece a comunidade. E aí, esses grupos estando fortalecidos, se consegue avançar com mais facilidade”, defende Clérison.
Além de tudo isso, sobre a relevância e o poder transformador das políticas públicas, os exemplos das famílias agricultoras reforçam ainda as inúmeras potencialidades e os desafios das comunidades rurais do Semiárido brasileiro; e que, como dizia o saudoso bispo da Diocese de Juazeiro e um dos defensores da Convivência com o Semiárido, Dom José Rodrigues, por aqui “não falta água, falta justiça!”.
“A família de Dona Duda, que é o nome da minha avó, a gente tem dois hectares e meio e a gente tem os caprinos, a avicultura, a gente produz ração e nossas frutas, em pequena quantidade. É possível viver nessa região. O pessoal fala que não dá, que não pode, pode sim! A gente pode, desde quando a gente tenha vontade e buscar o conhecimento. E, aqui na nossa comunidade, a gente só precisa de água e terra. Eu sou exemplo disso, nessa pequena área, a gente tem tudo isso, e consegue viver muito bem”, enaltece Cíntia.
As atividades com o LUME em Esfomeado foram realizadas pelo Irpaa no âmbito de uma Pesquisa-Ação executada pela Rede Ater Nordeste de Agroecologia, com a parceria da Porticus, uma organização internacional.
Texto: Eixo Educação e Comunicação do Irpaa
Fotos: Eixo Educação e Comunicação do Irpaa / Equipe técnica do Irpaa