Por Eduardo Sá, da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) / Mídia Ninja
Embora estejam espalhadas por todo o território nacional, as Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANC) ainda não estão na boca do povo. Cada vez mais difundidas Brasil afora, têm um potencial nutricional e de preservação do meio ambiente enormes. Taioba, peixinho da horta, ora-pro-nóbis, bertalha, beldroega, azedinha, mostarda roxa, dentre outras, estão entre as muitas plantas comestíveis que não estão nos hábitos alimentares da maioria das pessoas nem são vendidas nos grandes hortifrutis.
Para tratar do tema, a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) entrevistou Irany Arteche, nutricionista e mestre em Fitotecnia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ela coordenou uma experiência em Porto Alegre de inclusão na merenda escolar de alimentos provenientes da agroecologia e estuda o tema PANC há bastante tempo. Referência no assunto, defende que a comida cotidiana precisa ser de baixo impacto financeiro, menor impacto ambiental e maior valor nutricional possível. Segundo a estudiosa, é preciso mudar a forma de ver o alimento e combater a “monocultura do paladar”, sistematicamente reproduzida pela indústria alimentícia.
Como se deu essa sua aproximação com as PANC e do que se trata?
Coordenei o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) no estado e me deparei com um recurso financeiro imenso e produtos 100% industrializados, não perecíveis, adquiridos pela facilidade de distribuição. Foi quando conheci a agroecologia, conheci o pessoal do Centro Ecológico [ONG], que apresentou algumas soluções. Colocamos produtos não perecíveis e agroecológicos: arroz, feijão, açúcar, suco, doces de frutas etc. Tive contato com a agricultura familiar ao final do curso de nutrição. Então, percebi o quanto não sabia sobre produção de alimentos, apesar de saber fazer a tabela de valor nutricional. Percebi como a forma de produzir esses alimentos interferia na qualidade,além de já ter um senso crítico para as questões ambientais. Ao final do governo em 2002 e da minha gestão, tínhamos colocado cerca de 800 toneladas desses alimentos na alimentação escolar. Isso ainda sem a Lei [11.947/09] dos 30% e muito menos a priorização dos orgânicos.
No mestrado em agronomia, em 2003, um colega entrou na sala todo entusiasmado porque tinha encontrado uma flor linda, a dama da noite, que dura 24h. Esse rapaz era o Valdely Knupp, estudante de doutorado. Ficamos bastante amigo. Seu estudo falava de plantas comestíveis, matos de comer, ervas daninhas, várias denominações, que no final virou Plantas Alimentícias Não Convencionais. Ele tinha publicado um artigo chamado Hortaliças Comestíveis Neglicenciadas (HCN). Então, pensei num projeto de prospecção, identificação e usos culinários dessas plantas existentes nos assentamentos da reforma agrária em Nova Santa Rita. Foi nesse projeto, em 2008, que surgiu o termo PANC, que logo de cara Valdely não curtiu, pela sonoridade remetendo ao movimento de rebeldia musical. Mas, a partir de 2009, fora aceito esse acrônimo PANC e essas plantas que não eram vistas como alimentos. A tese dele, de 500 páginas, não tem esse termo, mas já havia o embasamento científico, embora muito restrito à academia. Juntamos então esse conhecimento ancestral com o científico em uma filmagem de 60 horas. Dessa gravação fizemos um compilado de 34 minutos e postamos no youtube. O Valdely já era doutor, estava escrevendo o seu livro e passou a divulgar essa gravação no Brasil todo. A chamada “Bíblia PANC”, editada pelo Instituto Plantarum, de autoria dele, tem fotos e receitas de chefs famosos, agricultores, nutricionistas etc.
Isso foi aumentando o mercado também para esse setor?
Houve um boom que, inclusive, levou à utilização dessas plantas por restaurantes de alta gastronomia. Vários chefs renomados começaram a usar as PANC e começou um contramovimento pela não gourmetização desse processo. Questionamentos de “por que PANC, se sempre foi taioba ou ora-pro-nóbis?” O acrônimo não renomeou as plantas conhecidas que já as consumiam, no entanto a grande maioria da população não as conhece. As PANC dão um carimbo ao alimento de que ele é comestível, e com o termo melhorou o entendimento sobre o assunto. Que sejam respeitados a sazonalidade, a genética e o local de cultivo. Tem vários alimentos das florestas que se consumidos sistematicamente preservariam esses territórios. São preservadas as tamareiras do oriente médio, mas não preservamos inúmeras frutíferas e palmeiras magníficas que temos, como o butiá, que está ameaçado de extinção, e o coco babaçu. Muita coisa só vamos preservar através do consumo monetarizado.
Você atribui essa caracterização aos aspectos culturais, comerciais, exotismo do gosto etc? O que pesa mais nessa balança?
Temos na economia, na cultura, na nossa sociedade uma entidade absolutamente competente naquilo que faz: a indústria alimentícia. Paladar é algo construído. Jean Claude Fischler tem uma frase determinante: “O homem é um ser onívoro, se alimenta de plantas, animais e do imaginário”. E a indústria alimentícia soube muito bem trabalhar isso, então hoje temos alimentos no imaginário das pessoas como prazer, pertencimento, poder, saúde etc. Tudo é monetarizado e tem um valor financeiro. Então, foi se descartando aquilo que é gratuito. A não ser que tenha uma horta na minha casa, se não vou comprar todo o alimento, jamais vou pegar algo nas ruas. Aqui tem muitas bananeiras e ninguém pega. O nosso conceito de alimento passa por um conceito de valor e, ao mesmo tempo, boa parte dos consumidores convencionais precisa de um rótulo e uma informação nutricional, além de ter um modo de fazer para as pessoas identificarem. A indústria alimentícia é soberana na nossa civilização.
O nome é autoexplicativo, mas tem muitas coisas por trás. Como foi essa construção?
Conhecemos esse nome melhor ao longo do tempo, mas na época era só para facilitar a pronúncia e identificação. É um termo que traduz um processo absolutamente dinâmico e contextualizado, porque pode ser convencional para mim e não ser para ti. Se conheço a taioba, não é PANC, a questão está entre ser convencional ou não. Se ela é inserida na cadeia comercial e tem um consumo constante sistematizado, ela é convencional. Mas no final das contas, todos queremos que todas as PANC se tornem convencionais, tenham um valor comercial e estejam na alimentação trivial, corriqueira e cotidiana das pessoas.
Fale um pouco mais sobre as experiências de alimentação escolar com PANC
Tem experiências exitosas, mas o grande entrave para a inserção dessas plantas no Pnae é que quem faz o pedido e/ou autoriza a compra dos alimentos precisa estar sintonizado com a pauta, ou seja, as nutricionistas e quem detém o processo da licitação. Como essas plantas não são convencionais, tem que se enxergá-las como uma solução para dar conta dos problemas que surgirão nas exigências dos editais e licitações. Participei, em 1999, de uma experiência no Rio Grande do Sul, que a partir dela se formou a garantia em lei de aquisição de, pelo menos, 30% dos alimentos serem comprados da agricultura familiar. Tinha muito recurso e não existia edital de licitação para a alimentação agroecológica no Brasil. Então, construímos um projeto que contemplava a aquisição de agroecológicos com o mesmo valor dos convencionais, apesar de com um “monte de urubu” em volta. Se a nutricionista, ao especificar um cardápio, escolher uma PANC bem corriqueira, como a peixinho da horta, que não dá todo ano, tem que adaptar. Até porque precisa botar o valor nutricional, mas nem todos têm, assim como o preço no mercado, quais embalagens, a forma de cozinhar etc. São muitos perrengues, mas dá para fazer para o município todo e quem sabe até mais.
Antes da pandemia, estávamos organizando um Encontro Nacional de Experiências Escolares com PANC, mas não ocorreu. Seriam encontros regionais com essas experiências sistematizadas, e depois um encontro nacional. Várias soluções já foram encontradas espalhadas pelo Brasil. Teve um professor de biologia em Viamão/RS que fez, através da disciplina dele, uma horta, colocou na merenda escolar, fez oficinas culinárias e criou um grupo de zap com a comunidade para realizar a venda. Saiu da escola a experiência, mas foi pela aula de ciência, por vontade própria. Todos eram parceiros, a diretora, a nutricionista, os alunos etc.
Quais os diferenciais das PANC?
São saudáveis, nutritivas, custo quase nada, palatáveis, saborosas, se prestam a fazer preparações muito similares àquelas que já temos hábito. Apesar da autonomia e de ser tão óbvio as pessoas ainda não se voltaram para as PANC. Um dos trocadilhos que dá com o acrônimo é a preparações de alimentícias não convencionais, partes dos alimentos, como a raiz do chuchu, que é comestível, assim como a entrecasca da melancia e vários outros. A PANC da vez é o pensamento alimentar não convencional: precisamos pensá-lo de outra forma. A comida deve fazer bem ao corpo, à alma e ao ambiente, além do prazer da escolha do alimento, a não ser que tenha restrição médica. Esse tripé tem que ser seguido, porque estamos na iminência de catástrofes, precisamos ver onde o alimento foi produzido e como e acompanhar até o descarte, saber o que estamos jogando fora. As pessoas falam em reaproveitamento de alimentos, mas a gente só reutiliza o arroz para fazer o bolinho. A maioria dos alimentos dá para usar integralmente , ele têm um potencial imenso.
É uma prática ambiental não convencional (PANC). Por que todos os jardins têm que ser ornamentais? Qual PANC é feia? Feia é essa monocultura dos alimentos. Por que não ter um jardim ornamental e alimentício? Comer as coisas de um jeito diferente, usar melhor os recursos que temos. Avançar na nossa autonomia, porque ficamos refém da indústria alimentícia e da indústria saúde. Precisamos nos dar conta dessa sintonia do alimento com a natureza, entender que a comida é uma fonte de prazer inesgotável que precisa fazer bem ao nosso corpo e ao ambiente. Ninguém quer estragar o planeta, ninguém quer a monotonia alimentar, precisamos seduzir as pessoas. É difícil até para as nutricionistas sair daquele desjejum padrão, o almoço com o arroz ao lado do feijão e uma carne com salada pouco variada.
Assim como o debate e a visibilidade da agroecologia vem crescendo nas últimas décadas, as PANC também têm ganhado uma projeção maior na sociedade?
Está avançando. Aqui em Porto Alegre, temos uma feira agroecológica, da Redenção, muito importante, mas nem 10% das bancas têm plantas não convencionais. O próprio agricultor, às vezes, não as consome, porque sempre deu o caruru ao porco e vai continuar dando. Em 2004, durante o mestrado, fiz um seminário sobre a saúde da pessoa que consumia o orgânico exclusivamente, porque não queria ter um câncer etc. [O publico do seminário] não sabia diferenciar um orgânico de um hidropônico, então é uma questão social muito complicada. Tem o individualismo, o poder do dinheiro, a indústria da conveniência é absurda, apesar de ser mais conveniente pegar essas plantas no quintal. Muitas questões precisam ser trabalhadas, a PANC é uma comida boa, traz autonomia, facilidade e saúde.
Como é o debate sobre os preços, a transição do que era de pobre, baratinho, até gourmetizar e virar coisa de bacana?
É caro porque tem outros penduricalhos. Fui ao mercado na Alameda Lorena, em São Paulo, em 2019, e uma bandeja de peixinho fino da horta custava R$ 11,90. É caro, mas olha onde está, e o público que vai ali comprar só vai achar ali. A pessoa não vai à feira e não importa a forma, esse segmento vai ao restaurante de alta gastronomia, ao supermercado elitizado. Mas, na feira em Porto Alegre, tem amarrados por R$ 4,00 de qualquer verde, como ora-pro-nóbis, jambu etc. Ali está sendo valorizado o trabalho e o lugar, não é o produto, que muitas vezes já nasce espontâneo. No mercado popular, todos os donos de restaurantes vêm comprar a picanha, mas os que têm maior poder aquisitivo não. É o preço de como ela chega no lugar final.
Quando fui ao assentamento da reforma agrária, mostramos todos os alimentos e não rolou. Não queriam plantar e comer PANC, porque remetia a um tempo de muita carência. As pessoas que têm menor poder aquisitivo querem poder comprar a mesma comida que pessoas que podem mais… O coração da bananeira tem em vários lugares de Porto Alegre, mas as pessoas não querem. A assistência ou doação com PANC e até ensinar a identificar para o extrativismo até funcionaria, mas depois de ultrapassar essa etapa de necessidade é difícil não aderir ao padrão porque foi construído nela um conceito e padrão de alimento que passa pela monetização. Tem gente que reclama de pé de amora, porque diz que suja o gramado.
PANC até resolveria o problema da fome mas não resolve, devido à falta de acesso e não da disponibilidade desses alimentos. Muita gente sabe que aquela planta dá para comer, mas a maioria não come. A pessoa que hoje compra uma carne de terceira, na hora que puder vai comprar a de primeira. A questão é dar acesso, que hoje muitas vezes é o dinheiro. Nossa cesta básica é inteira de commodities. É preciso combater a fome, mas também mudar o conceito.
Deve-se inserir as PANC fazendo substituições do convencional e tradicional para não criar uma rejeição na merenda escolar. Colocar serralha, ora-pro-nóbis na farofa ou carne moída, fazer sucos de frutas diferentes com alguma mais convencional , no arroz, e ir misturando. Não tem os choques visual e de paladar, que contam muito, e com isso vai criando uma nova trajetória dos alimentos nessa rotina. Sempre falando dos benefícios dessa troca, coisas muito convencionais tipo um cachorro quente com outro recheio, um hambúrguer e um macarrão diferente. Com crianças ou com qualquer pessoa.
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