Por Eduardo Sá, da Articulação Nacional de Agroecologia para a Mídia Ninja
Há 18 anos o Fundo Dema, que envolve diversas organizações do Pará, apoia mais de 920 comunidades da região amazônica. Nessas quase duas décadas, foram cerca de quinhentos e cinquenta projetos, vinte editais e oito chamadas públicas para atender os povos que habitam as florestas, os rios, o campo e as cidades no Pará. Fortalecimento da agroecologia, promoção de direitos e das organizações, recuperação de áreas degradadas, empoderamento feminino, realização de intercâmbios, capacitações, dentre outros temas estão na área de ação dos projetos executados com recursos do Fundo. Esta é mais uma experiência identificada pela iniciativa Agroecologia nos Municípios, realizada pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).
Criado em 2003, o Fundo apoia projetos coletivos dos Povos da Floresta (indígenas, quilombolas, agroextrativistas, ribeirinhos, agricultures/as familiares etc), visando a valorização socioambiental, o protagonismo dessas populações e a proteção do bioma Amazônia. Tudo com base no respeito à sociobiodiversidade, a garantia dos direitos humanos, econômicos, sociais, culturais e ambientais, a fim de assegurar a soberania alimentar e nutricional, a equidade de gênero, o respeito à autoidentidade e à diversidade cultural e religiosa dos povos. A ONG FASE integra um coletivo de organizações sociais que compõem o Comitê Gestor no diálogo com as instâncias do poder público, e é a responsável jurídica e administrativa do Fundo.
Fruto da luta e conquista das organizações e dos movimentos sociais da Amazônia, em parceria com o Ministério Público Federal e o governo brasileiro, sua criação é marcada pela homenagem a Ademir Alfeu Federicci, chamado carinhosamente de Dema, que foi brutalmente assassinado na frente de sua esposa e filhos nos anos 2000. Após sua morte, houve a derrubada de 6 mil árvores de uma das madeiras mais nobres da floresta amazônica, o mogno, encontradas boiando no Rio Xingu. O movimento fez a denúncia e lutou para que as toras não fossem leiloadas, mas destinadas para a criação de um fundo de apoio a projetos socioambientais, originando, assim, o Fundo Dema.
Chegando com sua família do Paraná à Transamazônica, na década de 1970, no período de construção da rodovia, durante a ditadura militar, Dema participou de diversos movimentos, sindicatos e lutas sociais em defesa dos povos da floresta. Chegou a ser vererador pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e sempre denunciou a retirada ilegal de madeiras em terras indígenas e fraudes na Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). Liderava o Movimento de Desenvolvimento da Transamazônica e Xingu (MDTX), de resistência à construção do Complexo Hidrelétrico de Belo Monte, e lutava por um processo humanizado de colonização da Transamazônica. Queria assegurar a educação, saúde e proteger as áreas de florestas, os rios e terras indígenas da ganância dos grileiros e empresas.
De acordo com as informações do Fundo Dema, desde 2011 o Fundo movimentou mais de R$ 9,5 milhões aplicados em centenas de projetos na região. Do ponto de vista político, o Fundo está inserido em diversas redes e articulações locais, regionais e nacionais, como o Movimento Xingu Vivo Para Sempre, Grupo Carta de Belém, Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e Pela Vida, Rede Brasileira de Justiça Ambiental, Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) entre outros.
Além de ser gerido por um comitê gestor, outras instâncias são articuladas pelo Fundo, como o processo de formalização do Fundo Quilombola Mizizi Dudu, a reestruturação do Fundo Indígena do Xingu (FIX), e a criação do Fundo Autônomo de Mulheres Rurais da Amazônia Luzia Dorothy do Espírito Santo. O nome deste último homenageia a história de luta e coragem de três mulheres em defesa da floresta: Luzia de Oliveira Fati, Dorothy Stang e Maria do Espírito Santo. Cada fundo tem um comitê gestor e cada comitê tem sua dinâmica própria com as organizações locais, respondendo às demandas específicas surgidas a partir dos territórios. Há também um fundo que atua especificamente nos municípios de Barcarena e Abaetetuba, criado a partir de um Termo Técnico de Cooperação que destina recursos provenientes dos danos coletivos ocasionados com o naufrágio do navio Haidar, ocorrido em 2015, e que visa fortalecer os projetos rurais e urbanos das populações da região.
De acordo com Graça Costa, presidenta do Comitê Gestor do Fundo, assim como muitas famílias vindas do Paraná, a família do Dema foi mais uma das que foram abandonadas pelos militares à beira das estradas e, ao longo dos anos, construíram agrovilas nos chamados ramais. Sem nenhuma estrutura, direitos territoriais e assistência técnica para a nova realidade, surgiram articulações como o Movimento pela Sobrevivência na Transamazônica e Xingu (MDTX), no qual Dema se formou, para as reivindicações dos povos nos territórios. Por muito tempo, esses movimentos de vanguarda fizeram muitas denúncias contra a prática ilegal de madeiras apreendidas pelo Ibama e depois compradas nos leilões pelos mesmos criminosos.
“No início do governo Lula, conseguiram dialogar sobre estes crimes. A Marina Silva era ministra do meio ambiente e esteve na região diversas vezes para ouvi-los. Naquele período, a população fez de novo uma apreensão de 6 mil toras de madeira, tiveram muitas propostas das comunidades, como fazer escolas, hospitais e moradias. Os movimentos acharam melhor constituir um Fundo a partir dessa madeira tratada e vendida no mercado externo. É um fundo fiduciário, portanto não se mexe no capital principal, que está depositado no banco público da Amazônia, e as aplicações desse recurso dão origem aos editais. É um fundo vigoroso, dos R$ 7 milhões que tínhamos no início, hoje temos R$ 18 milhões no banco. Mas estamos com dificuldade de fazer o edital, porque a inflação e os juros corroem o recurso e o Fundo Dema não pode fazer uma aplicação de risco”, explicou Graça.
Resgate da memória e das lutas
Para resgatar essa história de luta após 20 anos do assassinato do Dema, está sendo realizada a ‘Campanha Jornada de Homenagens 20 anos de Saudade – DEMA VIVE!’, com diversas atividades previstas ao longo do ano de 2021. Segundo os organizadores, a Jornada em curso vem promovendo o plantio de árvores, iniciado por meio da Campanha Fundo Dema Planta Vida na Amazônia, promovida pelo Fundo desde 2018,. Entre outras ações, a Jornada de Homenagens prevê o encerramento com um documentário a ser lançado em 2022, falando sobre a vida do Dema e as histórias de luta na Transamazônica. Essa iniciativa ainda está dependendo de recursos para sua realização. A iniciativa acontece em um cenário político e econômico extremamente desfavorável aos povos da floresta amazônica. O próprio presidente do Brasil Jair Bolsonaro se posiciona publicamente contra os indígenas e quilombolas, além de o ministro do meio ambiente Ricardo Salles flexibilizar cada vez mais as legislações ambientais. No mês de agosto deste ano (quando se completam os 20 anos de assassinato de Dema), será realizado um grande seminário virtual, para analisar a atual conjuntura e pautar as reivindicações dos movimentos.
Com o capital fiduciário já foram viabilizados dez editais, e o Fundo também tem recebido apoios, como o da Fundação Ford e do Fundo Amazônia, por exemplo. Em parceria com este último, já apoiou 112 projetos comunitários e, atualmente, tem 42 projetos selecionados, mas as exigências a serem atendidas pelas organizações comunitárias têm dificultado o acesso aos recursos e a realização das iniciativas. Os órgãos ambientais não estão funcionando presencialmente e os movimentos têm encontrado empecilhos para a emissão de certas documentações, como as das outorgas para o uso e o controle da água, por exemplo, na construção de poços. Para as comunidades pequenas é muito difícil a renovação de dispensa de outorga por falta de recursos para a manutenção do hidrômetro e as tecnologias necessárias.
“As discussões com essas organizações e os processos necessários para a execução coletiva desses editais têm trazido muitas inspirações, porque não é um fundo apenas de repasse de recursos, mas também tem em vista o empoderamento cívico, social e econômico dos povos da floresta. Nós da equipe somos educadores e prezamos muito isso, trabalhamos nesta dinâmica de elaborar os editais com o processo de escuta das demandas e depois cumprimos toda uma dinâmica de oficinas comunitárias para as organizações aprenderem a executar este projeto. Não aceitamos projetos elaborados por técnicos para não serem superficiais, mas sim para ser porta-vozes desses povos, resgatando o espírito coletivo do Dema”, afirmou Graça, presidenta do Fundo.
Essa entrevista foi publicada originalmente no site da Midia Ninja. Para acessar, CLIQUE AQUI.