A Contag Brasil promoveu na quarta-feira (17/06) mais um debate da série Prosa de Margaridas em tempos de pandemia, desta vez com o tema Mulheres do campo e agroecologia: um caminho para soberania alimentar. A atividade faz parte das comemorações dos 20 anos da Marcha das Margaridas e teve como objetivo dialogar sobre as estratégias de produção agroecológica e consumo sustentável, na perspectiva da segurança e soberania alimentar.
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Diante de um cenário de extrema crise política, econômica e sanitária no Brasil, segundo Mazé Morais, agricultora familiar e secretária de Mulheres da Contag, que também foi coordenadora geral da 6ª Marcha das Margaridas, é fundamental traçar estratégias de produção e consumo para sustentação da vida. Para ela, as mulheres são fundamentais neste sentido: desde os seus quintais produtivos à distribuição e consumo dos alimentos.
É fundamental pensar em sistemas a partir dos territórios, que fortaleçam o campo e a cidade, para garantir a comida na mesa da sociedade brasileira, defende Fran Paula, engenheira agrônoma, mestre em saúde pública, integrante da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida e educadora na ONG Fase-MT. “É preciso pensar a produção alimentar como um caminho para enfrentar outros problemas e desigualdades que vivemos como, por exemplo, segundo o IBGE, a existência de quase 55 milhões de pessoas em situação de pobreza com o direito à alimentação ameaçado”, disse a educadora.
“A ONU alertou, em seu relatório, para a possibilidade de duplicação do número de pessoas que vão enfrentar [a fome] durante a pandemia. Dados da FAO apontam que existem cerca de 6 mil espécies alimentícias do mundo, mas apenas 200 respondem significativamente para a produção alimentar mundial. Dessas, apenas nove respondem a 66% da produção agrícola global. Há uma gritante concentração do consumo alimentar”, criticou Fran.
O controle dos setores agroalimentares define o que se planta e se come numa lógica capitalista de desenvolvimento, cuja economia produz desigualdades que estão se aprofundando durante a pandemia. Complementando sua avaliação, Fran alertou que tem aumentado o consumo de alimentos processados e ultraprocessados, mudando o hábito alimentar das pessoas.
“A soberania alimentar é um direito de todos e todas, por isso o desafio é construir caminhos coletivos. Pensar em reforma agrária, a lógica da produção e consumo do alimento a partir da erradicação de problemas mais estruturais”, destacou.
Feminismo e agroecologia
A relação entre soberania alimentar e agroecologia é simbiótica, porque ambas buscam a produção de alimentos saudáveis e respeitam a vida e o meio ambiente. A produção alimentar, neste sentido, precisa ser baseada em autonomia, igualdade, liberdade e saúde. Uma proposta política que integre movimento, conhecimento científico e prática. E todo esse processo, com o papel central das mulheres, explicou Sarah Luiza Moreira, cientista social, mestra em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural.
“É um modo de produzir, de se relacionar e de viver na agricultura com relações respeitosas entre nós e a natureza. Princípios como ética, responsabilidade, solidariedade, respeito às populações tradicionais, diferentes saberes, culturas, aos bens comuns. Os movimentos de mulheres têm pautado isso em suas ações e encontros, uma importante contribuição desse olhar para além do produtivo e do lucro”, afirmou Sarah, que é integrante do GT Mulheres e do Núcleo Executivo da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).
A economia feminista tem mostrado que a participação da mulher vai além do monetário, da produção e comercialização dos produtos. É preciso perceber que há todo um trabalho que gera renda não monetária – como a produção para o autoconsumo, o trabalho doméstico e de cuidados -, que é fundamental para a sustentabilidade da vida e para a economia. Na construção do Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo), por exemplo, houve uma intensa participação das mulheres, com destaque para a atuação da Marcha das Margaridas nos processos de elaboração e implementação das políticas.
“As mulheres estão construindo a agroecologia desde os seus quintais, nas ruas e redes. E não é possível, nesse contexto, falar da agroecologia sem a defesa da democracia, pois ela só é possível com políticas públicas inclusivas, espaços de participação social e fortalecimento das nossas redes, desde os nossos territórios, com nossas diferentes identidades”, reivindicou Sarah.
A importância da participação das mulheres a partir dos territórios foi reforçada por Luiza Cavalcante, agricultora familiar agroecológica do Sítio Ágatha, em Tracunhaém, Pernambuco. Os cuidados nas relações humanas e os valores tradicionais ensinados durante muitas gerações, resgatando suas ancestralidades, trazem elementos fundamentais para a produção agroecológica. Para ela, a agroecologia resgata referências dos povos negros e no seu fazer em sintonia com a natureza.
“São valores muito fortes, de se preocupar com a vizinhança, pois quando cuidamos das pessoas passamos a cuidar do todo: das águas, do ar, da comida que a gente come. A agroecologia sem território é um braço quebrado, assim como acontece com nossos povos negro, indígena e tantos outros, na ausência das suas terras. Para cuidar da vida e dos alimentos saudáveis, é necessário manter nosso banco de sementes crioulas para nós e nossos animais”, afirmou Luiza.
Após nove anos lutando pela terra embaixo de lonas pretas, a agricultora lembra da importância da agroecologia para o fortalecimento do assentamento Chico Mendes, onde mora na zona da mata pernambucana, e para a garantia da soberania alimentar da sua comunidade. O acesso precário às políticas públicas e a outras condições necessárias para um desenvolvimento sustentável e a falta de formação técnica foram alguns dos desafios destacados para que seja possível fazer agroecologia e ter soberania alimentar.
“A comida chega à mesa do povo e muitas vezes não sabem quem a produz e em quais condições. Essa agricultura familiar de base agroecológica passa por violações de condições básicas, mas, mesmo assim, tem sido muito forte. Nós, enquanto mulheres, considerando a maneira como somos tratadas e invisibilizadas, precisamos juntar forças e nos posicionarmos, especialmente nesse momento da pandemia e da violência”, concluiu.
A atual conjuntura é extremamente desfavorável à agricultura familiar, pois, dentre diversos outros fatores, mais de 600 agrotóxicos foram autorizados. O atual governo vai contra tudo o que os movimentos populares defendem e o que foi construído em favor da agroecologia nos últimos anos. Muitos canais de comercialização de alimentos, por exemplo, foram interrompidos. Mesmo assim, defende Adriana do Nascimento, agricultora familiar e diretora da FETAPE, no meio de uma pandemia, é ainda mais importante garantir o alimento na mesa da população.
“Precisamos da agroecologia vinculada ao projeto de sociedade que queremos, uma democracia implementada para esse projeto, com prioridade para as pessoas e não para o lucro. E tem que ser pelas mãos das mulheres, porque temos a sensibilidade de que a prioridade é a vida. Valorizar o lugar dos nossos antepassados. A agroecologia não é algo novo, sempre foi feita pelos nossos povos. É através da nossa união que vamos superar tantas desigualdades, da nossa aproximação e sentimento coletivo, independentemente de classe social, no campo e na cidade”, afirmou
Para isso, segundo ela, é fundamental aprofundar o debate de um projeto político também no campo eleitoral. O exemplo de Marielle Franco, vereadora negra e favelada, brutalmente assassinada no Rio de Janeiro, mostra a importância de como a luta institucional também contribui para as transformações. “As eleições devem ocorrer e temos que estar nesse processo de olho nas nossas companheiras, usar as ferramentas necessárias e possíveis nesse momento”, observou.
A pauta da alimentação e da saúde unificam o campo e a cidade, daí a necessidade de organizar as pautas para o diálogo e estender diversas lutas, como a indígena e das mulheres negras, e pelos territórios, a partir destas bandeiras. A agroecologia sempre atuou em ações em redes, então o desafio é fortalecer a coesão enquanto movimento para lutar contra esse governo.
“A retomada do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), articulada por mais de 700 organizações, em níveis federal, estadual e municipal, fez com que alguns estados e municípios lançassem editais como resultado da pressão popular. Temos que recuperar nossa capacidade de articulação social. Este é um ano eleitoral e, em nossas estratégias e territórios, precisamos fazer um pacto pela defesa da vida com vereados e prefeitos”, propôs Fran Paula.
“É preciso valorizar o trabalho das mulheres quilombolas, indígenas, das que fazem assistência técnica, estudantes, professoras, agricultoras, camponesas etc, a partir dos seus territórios. Seguimos afirmando que “Sem Feminismo não há Agroecologia” e que “Se tem racismo não tem agroecologia”. Essa precisa ser uma luta coletiva, tendo as mulheres como pilares dessa construção. Precisamos ter coerência entre nossos discursos e práticas em busca de uma sociedade mais justa e igualitária. Não vamos nos calar frente a esse movimento reacionário assustador no País”, acrescentou Sarah Luiza.
Texto: Eduardo Sá
Edição: Viviane Brochardt/Articulação Nacional de Agroecologia (ANA)