A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas – CONAQ emitiu ontem (08/01) carta denunciando os retrocessos da transferência das atribuições de “identificação, o reconhecimento, a delimitação, a demarcação e a titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades de quilombos” para o Ministério da Agricultura.
Leia o documento:
“A Medida Provisória decretada pelo Presidente Jair Bolsonaro em 01 de janeiro de 2019 (MPV Nº 870/2019) é uma antecipação de um Etnocídio dos quilombolas, além de colocar em risco o meio ambiente brasileiro. Na presente Carta indica-se um conjunto de aspectos que essa MPV abre brechas colocando em visibilidade os perigos que se desenham com esse cenário para os mais de 6 mil quilombos no Brasil.
Em primeiro lugar, passar a competência de “identificação, o reconhecimento, a delimitação, a demarcação e a titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades de quilombos” para o Ministério da Agricultura, que sempre esteve sob a competência da União Democrática Ruralista (UDR) – pelo que se sabe da história dos ruralistas no Brasil – é provocar um ETNOCÍDIO dos quilombos. Não é preciso conhecer profundamente a história para saber que infelizmente os grandes detentores de terras no Brasil ainda têm uma mentalidade que passa pela incompreensão da importância desses quilombos para que o Brasil seja como nação e como povo. Os quilombos são patrimônio cultural e são base de formação da diversidade do povo brasileiro. Os ruralistas deveriam ser os primeiros a defender esse patrimônio, até porque existem estudos que mostram que os territórios quilombolas estão em importantes áreas de preservação ambiental.
Mas alguém pode perguntar: por que garantir direitos aos quilombolas? Quem eles (as) são? Isso nos leva ao segundo ponto. Os Quilombos foram uma forma de resistência ao sangrento processo de 350 anos de escravização de negros (as) no Brasil que, retirados de suas terras na África, foram trazidos à força para essas terras. Depois da falsa Abolição da Escravidão (1888) e a Proclamação da República (1889) esses grupos mantiveram-se em seus territórios, produzindo e desenvolvendo modos de criar, fazer e viver. Ficaram esquecidos pelo Estado brasileiro e apenas com a Constituição de 1988 é que tiveram seus direitos reconhecidos no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) 68. Ora, apenas quem nunca conheceu um quilombo ou que apenas veja as terras do Brasil sob o olhar do mercado, é que não reconhecerá a legitimidade desse direito.
Um terceiro aspecto é que nesses quase 30 anos pós Constituição de 1988 foram muitas as lutas para que os marcos legais e o modo de reconhecimento para a titulação fossem pensados dentro do que garante o respeito a nós quilombolas. Nesse processo, por exemplo, na primeira fase para o reconhecimento da comunidade, a Fundação Cultural Palmares (FCP) construiu um histórico de conhecimento que é antecedida pelo pedido do quilombo para o autorreconhecimento e, posteriormente, a FCP concede a autoatribuição. Apenas com esse documento em mãos é que se abre o processo para a titulação no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Esses dois órgãos sequer são mencionados na MPV 870/2019 como se tivessem sido extintos. É importante que se diga que esses órgãos são compostos por estudiosos, sobretudo antropólogos, que construíram uma expertise para lidar com a questão quilombola. Portanto, o que denunciamos aqui é, antes de tudo, o desrespeito com um longo processo de construção de um legítimo dos nossos direitos em ser quilombolas. É importante lembrar que defender o nosso direito o nosso território é defender nosso direito a ter nossos territórios preservados, assim como a história e a memória de grupos que construíram juntos com os indígenas e todo o povo brasileiro uma trajetória que não pode agora ser esquecida, em prol de interesses econômicos os quais, mesmo com todo capital do mundo, não conseguirão restaurar as florestas, as formas de cultura e os modos de fazer e viver. Inevitavelmente essa MPV jogará na fossa da história a memória de tantos homens e tantas mulheres que morreram para garantir esse direito. Portanto, essa conta não recairá apenas sob os quilombos mas sob nosso ar, rios, peixes, cerrados, montanhas, cachoeiras, estação de chuvas e estações de estio (tão importantes para as plantações), enfim, sobre o ar que respiramos e a história desse país a qual não podemos deixar que se apague sob o argumento do crescimento econômico que, na verdade, tem por trás as ambições de grupos poderosos.
Lembramos que estamos na ‘Década do Afrodescendentes’ ,em que a comunidade internacional reconhece que os povos afrodescendentes representam um grupo distinto cujos direitos humanos precisam ser promovidos e protegidos. Cerca de 200 milhões de pessoas autoidentificadas como afrodescendentes vivem nas Américas. Muitos outros milhões vivem em outras partes do mundo, fora do continente africano, segundo o site da ONU.
Nota-se que o povo quilombola foi o que mais foi tirado direitos conquistados, em detrimento a garantia das invasões dos grandes empreendimentos. Foram várias as tentativas: ADI 3239, Corte dos recursos destinados para regularização Fundiária 50 milhões para 964 mil Reais, Iniciativas de órgão Governamentais pra redução dos Territórios sem consulta previa como reza a OIT.169, promoção de ações que fragilizam e promovem a fragilização dos representantes das comunidades, agora mais recente a tutela do governo Brasileiro para promoção dos assassinatos das lideranças e criminalização das associações Quilombola ou entidades representativas da população Quilombola.
Em recente pesquisa “Racismo e a Violência contra os Quilombos no Brasil”, realizada pela CONAQ e Terra de Direitos, constatou-se que os assassinatos aumentaram mais de trezentos e cinquenta por cento em menos de dois anos. Dados estes que muito nos preocupam, pois os crimes encontram sem punição.
Sabemos que as iniciativas colocadas pelo atual presidente da República, que declarou publicamente que os grandes latifundiários terão armas potentes pra usar contra os Quilombolas e que as terras quilombolas não mais serão regularizadas “Não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou para quilombola” e posteriormente coloca o INCRA sobre a regência do Ministério da Agricultura atualmente ministério sobre domínio da Bancada dos grandes latifundiários, mais conhecida como a Bancada da Bala.
Não vivemos isolados (as) do Brasil de verdade, não somos explorados por ONGs e não precisamos desta integração que quer nos matar que não nos respeita e nem valoriza os quilombolas como Brasileiros (as) de verdade.
Neste sentido, afirmamos que quem não é quilombola não pode sugerir ou ditar regras de como devemos nos comportar ou agir em nossos territórios em nosso país. Temos capacidade e autonomia para falar por nós mesmos, queremos diálogo e respeito a democracia e a Constituição Federal com o Sr. Presidente, não vamos aceitar medidas de cima pra baixo.
Senhor presidente, temos 1% de terras brasileiras tituladas e não 15%, ao contrário quem concentra as terras são os grandes latifúndios, ruralistas, agronegócio lembrando que a agricultura familiar produz mais de 70% dos alimentos saudáveis que os brasileiros consomem.
A estrutura racista do governo brasileiro na lentidão em não titular os territórios quilombolas acirra os conflitos agrários, onde nós sofremos com a violência do mesmo estado que deveria nos proteger. O racismo mata!
Somos mais de 6 mil Quilombos no Brasil desses mais da metade são reconhecidos (certificados ou titulados) pelo Governo brasileiro. Somos 16 milhões de quilombolas em 24 estados da Federação e exigimos respeito com nossa história, nossa ancestralidade e nossos territórios, por nenhum quilombo a menos, nenhum passo atrás.
Brasília/DF, 08 de Janeiro de 2019.
Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas