A Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) divulgou, na manhã desta quinta-feira (03), o Manifesto sobre o Aumento da Violência no Campo, nas Florestas e nas Águas. O anúncio aconteceu durante a plenária da Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Cnapo), que ocorre no auditório do Anexo I do Palácio do Planalto, em Brasília.
Durante o ato, representantes da sociedade civil integrantes da Cnapo fizeram uma homenagem a todas e todos que tombaram na luta por direitos e justiça no campo, nas florestas e nas águas. “José Pantoja, presente! José Raimundo Mota de Souza Júnior, presente! João Pereira, presente! Alan Gildo, presente! Lindomar Fernandes, presente, presente, presente!”, eram as palavras emocionadas e indignadas que lembravam as pessoas assassinadas por conflitos no campo.
João Pereira, quilombola da Comunidade Santana, liderança do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), morador do município de Antônio Gonçalves, Bahia, foi assassinado em abril de 2016. Alan Gildo, liderança do assentamento Terra Nossa, município de Ponto Novo, Bahia, militante do MPA, assassinado em abril deste ano. José Pantoja, extrativista da Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) do Rio Cautário, uma Unidade de Conservação (UC) no estado de Rondônia, assassinado em maio passado pelo gestor da UC. José Raimundo Mota de Souza Junior, quilombola, dirigente do MPA no Quilombo Jiboia, município de Antônio Gonçalves, Bahia, e Lindomar Fernandes, quilombola, morador do município de Lençóis, na Chapada Diamantina, Bahia foram assassinados no mês passado.
Todas essas pessoas tinham coragem para lutar, apesar das ameaçadas que recebiam e da conivência do Estado, que fecha os olhos para os crimes que vitimizam os mais pobres e cujos assassinos seguem impunes. “Lemos os nomes de cada uma dessas vítimas e fizemos questão de colocar uma placa sobre a mesa, durante a plenária da Cnapo, em um ato simbólico de resistência. A luta deles não pode ter sido em vão. O vazio que vemos na composição dessa mesa deve ser uma imagem que nos motive a reagir”, explica Denis Monteiro, secretário-executivo da ANA e integrante da Cnapo.
O Manifesto divulgado pela ANA chama atenção para o aumento dos conflitos no campo. “No último ano tal contexto se acirrou brutalmente. Houve elevação expressiva do número de mortes no campo. No ano 2017 já se contabilizam 48 mortes, sendo mais que o dobro dos assassinatos do ano passado para o mesmo período”. O aumento dos conflitos e do número de mortes no campo se deu justamente no período do governo Temer. “Em 2016 foi diagnosticado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) o dobro de casos de assassinatos de trabalhadores rurais em relação à média dos últimos 10 anos – de 2005 a 2015. Também nesse período registrou-se o maior número de conflitos no campo dos últimos 32 anos, com 1.079 conflitos, uma média de quase três registros por dia no país”, denuncia o documento assinado pela ANA.
O ano 2017 parece que não será diferente e os crimes têm se tornado cada vez mais violentos, conforme esclarece o Manifesto: “Neste ano vimos a crueldade do assassinato de nove trabalhadores rurais em Colniza, no Mato Grosso; o ataque que decepou e feriu indígenas Gamela no Maranhão; a chacina de Pau D’Arco que assassinou dez trabalhadores sem-terra no Pará orquestrado pela polícia militar; em julho em menos de uma semana duas lideranças quilombolas foram assassinadas cruelmente na Bahia; somente Rondônia apresenta 13 mortes em conflitos rurais e a Amazônia Legal caracteriza-se como o palco mais emblemático de chacinas e torturas do país”.
Também é evidenciada no texto a decisão do governo brasileiro de priorizar o modelo agroexportador concentrador de terras “com base em práticas ilícitas, conflitos fundiários e grilagem. O que implicou ciclo perene, estrutural e severo de violência, assassinatos aos povos do campo, das águas e florestas e impunidade aos grandes proprietários de terras e empresas violadoras de direitos humanos.”
O Manifesto vem a público um dia após a sessão na Câmara dos Deputados que barrou a abertura do processo contra Michel Temer por corrupção passiva resultante de relação ilícita estabelecida com uma grande empresa do agronegócio, o frigorífico JBS. Vale ressaltar que dos 263 deputados que votaram pelo fim da denúncia contra Temer, 129 foram da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), conforme apurou o repórter Alceu Castilho, do De Olho nos Ruralistas (Ler: Metade dos votos para Temer saiu da Frente Parlamentar da Agropecuária)
A denúncia, feita pelo procurador-geral da República Rodrigo Janot, aponta que o peemedebista Michel Temer – que assumiu a Presidência da República em 2016, após o golpe que destituiu do cargo a presidenta Dilma Rousseff, eleita em 2014 para o segundo mandato com 54% dos votos de brasileiras e brasileiros – teria beneficiado o dono do frigorífico JBS, Joesley Batista, em troca de favores.
Na matéria JBS comprou gado da família do maior desmatador da Amazônia, de autoria de André Campo e publicada em março de 2015 pela Repórter Brasil, consta que a JBS – a mesma empresa que, segundo Janot, teria pago propina a Michel Temer – comprou gado da família de Ezequiel Antônio Castanha, preso pela Polícia Federal sob acusação de ser “o maior desmatador da Amazônia de todos os tempos”. Ezequiel e seu pai, Onério Castanha, diz a matéria, “são réus em ação penal movida pelo Ministério Público Federal do Pará (MPF-PA). A ação descreve Ezequiel como o chefe de uma quadrilha responsável por grilagem de terras, invasão de áreas públicas e desmatamento ilegal no entorno da BR-163, rodovia que atravessa milhares de quilômetros de floresta amazônica. O fazendeiro Onério Castanha é apontado como membro dessa quadrilha. Além de coautor de vários crimes ambientais para a implantação clandestina de pastagens, ele seria um dos principais “laranjas” do grupo visando esconder o patrimônio obtido por meio da atividade criminosa”. Onério também constava na “lista suja do trabalho escravo” até dezembro de 2014. Essa não é a única denúncia envolvendo a JBS, ainda segundo informações da Repórter Brasil, que aponta 17 casos em que o frigorífico é citado (Leia mais).
Esse casamento de interesses entre o agronegócio e o Estado está na base da criminalização dos movimentos sociais, especialmente os ligados à reforma agrária e aos direitos territoriais de indígenas e quilombolas. “A crescente criminalização das lideranças dos movimentos sociais, cuja instauração da CPI do INCRA/FUNAI é o exemplo máximo da tentativa de amedrontar e frear os defensores que lutam pela distribuição de terras no país. Além do desmonte da FUNAI, com o corte drástico de orçamento extinguindo cargos, principalmente das áreas e demarcação. Assim como parecer da Advocacia-Geral da União que aceita a ‘tese do marco temporal’ para a demarcação das terras indígenas, sem levar em consideração todas as expulsões e retiradas forçadas sofridas pelos povos indígenas antes da constituição de 1988”, esclarece o Manifesto.
Para a Articulação Nacional de Agroecologia, “o Estado Brasileiro acentua os conflitos e ações violentas de forma direta e institucionalizada pelos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário ao corroborar com a concentração e grilagem de terras, a exemplo da Lei 13.465/2017 que trata de regularização fundiária rural e urbana, indicando o aumento da grilagem e da especulação imobiliária, e do Projeto de Lei de nº 4.059/2012, o qual visa à venda de terras brasileiras a estrangeiros e teve tramitação acelerada neste período. Além da falta de orçamento para a titulação de territórios quilombolas, do reconhecimento do território de povos e comunidades tradicionais e da desapropriação de terras para reforma agrária, uma vez que o governo destinou em 2017 quase 64% menos recursos que em 2016. O julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.239/2004 ajuizada pelo DEM, no STF, que questiona o Decreto 4.887/2003 que regulamenta a titulação das terras de quilombos também se insere no contexto de barrar o avanço nos direitos humanos às comunidades quilombolas no Brasil. Ainda, o Estado se apresenta cada vez mais omisso, inerte ou moroso na apuração, investigação e responsabilização dos patrocinadores e executores das violências perpetradas nos conflitos agrários. Tudo isso fere frontalmente os princípios e diretrizes da Política e do Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica que preza pela ampliação da reforma agrária, à democratização do acesso à terra e à garantia de direitos aos trabalhadores do campo”.
Por fim, a ANA e as entidades que a compõem concluem o Manifesto exigindo “postura ativa do Estado na responsabilização das violações perpetrados e na garantia de medidas efetivas de proteção aos defensores/as de direitos humanos, bem como a adoção de medidas estruturais de democratização da terra e da justiça no Brasil”.
Texto: Viviane Brochardt, com colaboração de Beth Cardoso e Anna Crystina Alvarenga
Créditos das fotos:Divulgação do Manifesto da ANA – Beth Cardoso e Luciano Marçal da Silveira; Sessão da Câmara durante votação da denúncia contra Temer (02/08/2017- Brasília- DF, Brasil) – Lula Marques/AGPT.
Exterminar populações nativas para ocupar seus territórios é uma tradição brasileira. Começou no ano de 1500, quando exploradores portugueses desembarcaram das caravelas e encontraram no litoral da Bahia índios que habitavam há séculos as terras anunciadas como recém-descobertas. A indiferença ao genocídio dos povos originários foi amparada pela Doutrina da Guerra Justa, utilizada pelos colonizadores para banalizar a morte dos pagãos resistentes à chegada do progresso. Pagãos ou “gentios bárbaros” eram considerados todos os povos que não compartilhavam com os conquistadores europeus religião, língua e costumes e chegada do progresso significava a ocupação de suas terras pelo invasor estrangeiro. A História do Brasil precisa ser revista para revelar interpretações mais verossímeis do que as apresentadas nos livros didáticos, omissos em relação ao tratamento genocida dispensado pelo Estado Brasileiro aos povos originários. Índios avistados nos semáforos das cidades brasileiras, pedindo esmolas para garantir a sobrevivência, provam que a tradição continua, porém com versão atualizada. Chegada do progresso significa, hoje, expulsar populações indígenas de suas terras, derrubar a floresta e implantar nelas atividades altamente lucrativas que destroem o meio ambiente e desestruturam a organização social indígena. Quem lucra com a mineração à base de mercúrio que contamina rios e lagos onde os índios pescam e bebem; com o comércio clandestino de madeira e carvão que reduz florestas inteiras a montes de toras e brasas; com a plantação extensiva de milho e soja que abusa dos agrotóxicos e torna o Brasil o maior consumidor de venenos do planeta, e com os projetos de usinas hidrelétricas que são construídas sem respeitar estudos de impacto ambiental e social ?