Por Ana Ferrareze, colaboradora da Associação Floresta Protegida (AFP)
“Não quero invasores nas terras delimitadas. Não aceito madeireiro e garimpeiro em Terra Indígena. Não quero pescador entrando pra pescar. Não podemos parar de lutar pela nossa terra. Caciques têm que ir pra Brasília levar documento e falar com Michel Temer”, alerta o Cacique Raoni Metuktire, na primeira mesa redonda realizada durante a II Feira Mebengokré de Sementes Tradicionais. O tema da discussão era segurança alimentar e preservação das sementes tradicionais, mas nenhum assunto que envolve a causa indígena se distancia da questão da demarcação de terras. Isso porque os povos originários de nosso País têm a terra como um bem imprescindível para seu bem-estar e reprodução física e cultural, em uma relação coletiva muito diferente do conceito de propriedade privada da sociedade capitalista na qual estamos inseridos. Apenas com o seu direito à terra assegurado eles podem se dedicar à sua maior tecnologia: a semente.
“As sementes tradicionais são frutos de um cuidadoso trabalho de observação, seleção, cruzamentos, de práticas tradicionais, de trocas ancestrais”, explica Flavia Londres, da ANA (Articulação Nacional de Agroecologia). “São materiais altamente adaptados às condições específicas de cada região, desenvolvidos há mais de 10 mil anos em um trabalho realizado principalmente pelas mulheres, que perceberam sua importância e os adaptaram às condições do campo”. Flavia relata que além dessas sementes terem sido melhoradas ao longo do tempo, elas são de livre circulação, não têm dono, podem ser trocadas à vontade entre diferentes povos.
É o contrário do que acontece com as sementes desenvolvidas nos centros de pesquisa públicos e privados, que começaram a ganhar muita importância e recursos a partir da segunda metade do século 20, no contexto que ficou conhecido como Revolução Verde, que visava produzir alimento em grande quantidade e tinha como mote o fim da fome no mundo. “O problema é que essa semente melhorada vinha com um pacote para funcionar. Ela só podia ser produzida nas chamadas ‘condições ótimas’”, conta Flavia. Por isso, foi preciso artificializar. Ou seja, investir no desenvolvimento de sistemas de irrigação, adubação química, mecanização e agrotóxicos. Com propaganda forte, apoiada por instituições como FAO (Food and Agriculture Organization of the United Nations) e Banco Mundial, logo a mensagem foi disseminada, sementes distribuídas e alterações profundas feitas na estrutura agrária.
Resultado: o mundo continua cheio de famintos e o veneno se apossou das mesas das famílias. A estratégia na época vista como revolucionária só trouxe ganhos às grandes corporações, que hoje são cinco no total a controlar as sementes do mundo inteiro (Bayer-Monsanto, Syngenta, Dupont, Basf e Dow). “Em 1965 foi criada a primeira lei de sementes para regulamentar a fiscalização do comércio de sementes no Brasil (Lei nº 4.727), que impedia os materiais crioulos de serem comercializados, assim como a integração de programas públicos de aquisição, troca e distribuição de sementes. Uma concentração de mercado que levou ao desaparecimento de muitas espécies, variedades”, complementa Flavia. Fora isso, pequenos produtores rurais que não tinham recursos para aderir ao “pacote completo” da dita revolução acumularam dívidas e perderam suas terras na tentativa de se enquadrarem no novo cenário, distante de sua realidade sociocultural e econômica. Não só as sementes, mas todo o conhecimento tradicional atrelado a elas – de como plantar, colher, cultivar segundo as leis da natureza – também desaparecia.
Insegurança alimentar: as grandes ameaças no Brasil
A legislação avançou no Brasil desde 1965. Conquista importante de movimentos sociais e organizações da sociedade civil. Em 2003, foi implementada a Lei nº 10.711, mais conhecida como Lei de Sementes (é a terceira lei nacional – substituiu a nº 6.507/1977), que reconheceu a semente de agricultores familiares, assentados da reforma agrária e povos indígenas. Sem necessidade de registro (o RNC – Registro Nacional de Cultivares), ela pode ser plantada, consumida, comercializada e trocada entre eles – a comercialização no mercado formal não é autorizada. Ainda assim, este é apenas um ponto específico que contempla os sistemas locais. Estamos longe de alcançar uma legislação que não privilegie o rendimento e a produtividade praticados por empresas privadas e volte os olhos aos saberes e práticas agrícolas do pequeno produtor, ancestralmente o grande cientista do campo, deixado de escanteio.
Na II Carta Aberta de Mojkarakô, elaborada durante a Feira pelas lideranças indígenas presentes, demandas e reivindicações foram feitas em relação à segurança alimentar dos povos indígenas. Entre elas, está a exigência da instituição do Programa Nacional para a Redução do Uso de Agrotóxicos (PRONARA). O Brasil é o país que mais usa agrotóxicos no mundo, mesmo não sendo o maior produtor agrícola. Nossas sementes melhoradas são criadas para dependerem de agrotóxicos em grandes quantidades. A preocupação dos grandes produtores não é se o consumidor vai ingerir resíduos químicos, tantos sem ideia do quanto aquelas frutas ou legumes que veem tão bonitos estão contaminados; se os trabalhadores rurais são intoxicados durante sua rotina de trabalho, muitas vezes sem os equipamentos e roupas próprios, e contrairão doenças crônicas, câncer, problemas neurológicos, problemas reprodutivos; se os rios, o ar, a terra, a chuva, os lençóis freáticos ficarão contaminados por anos, atingindo as comunidades que dependem deles para sobreviver. O objetivo é produzir cada vez mais. É destruir quem ataca suas lavouras, as pragas e insetos que tornaram-se mais resistentes ao longo dos anos por conta do uso inconsequente de veneno. Por isso também, os guerreiros Mebengokré exigem “que sejam urgentemente implantadas faixas de proteção ambiental no entorno de Terras Indígenas, proibindo o uso de transgênicos e a pulverização de agrotóxicos”.
Em 2008, a Anvisa iniciou a reavaliação de 14 pesticidas que podem apresentar riscos à saúde. Até agora, nenhuma conclusão foi alcançada. No Brasil, usamos agrotóxicos considerados “muito perigosos”, proibidos em outros países ditos de primeiro mundo, como EUA e membros da União Europeia. São muitos deles, inclusive, que não consomem, mas continuam produzindo e vendendo aos países em desenvolvimento. Para piorar, o Governo brasileiro concede redução de 60% do ICMS, isenção total de PIS/COFINS e do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) à produção e comércio dos pesticidas. Nesse contexto, os Mebengokré reivindicam que seja garantida a isenção de impostos aos produtos da Sociobiodiversidade e que o PLANAPO (Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica) fortaleça o diálogo com os povos indígenas e incorpore mais ações para a promoção da soberania alimentar e nutricional, a conservação de sementes tradicionais e a geração de renda.
“Dia das eleições tá perto. Precisamos de representantes indígenas no governo”, alerta Bengoti Kayapó, assessor indígena da Associação Floresta Protegida, ao final da discussão realizada na Feira. Diante de tantas ameaças, os Mebengokré finalizam a carta-aberta com um apelo: “Por fim, esperamos que a sociedade brasileira, inclusive aqueles que nos têm atacado reiteradamente, perceba a contribuição fundamental que os povos indígenas representam para as presentes e futuras gerações, para a qualidade do ar que respiramos e da água que bebemos, e que possamos conviver de forma pacífica e respeitosa, e trabalhar juntos por um Brasil e um mundo melhor”.