O que o sistema capitalista tem a ver com o voto dos deputados que defenderam o impedimento da presidenta Dilma Rousseff em nome da sua família? Não sabe? Então, você está convidado/a a ler a entrevista com Míriam Nobre, da Sempre Viva Organização Feminista (SOF) de São Paulo. Nela, a militante da Marcha Mundial das Mulheres põe pelo avesso a estrutura que sustenta o acúmulo de riquezas de poucos a partir da lógica da exploração da força dos trabalhadores e das trabalhadoras. Inclusive, das mulheres que não estão empregadas.
Nesta linha de raciocínio, vamos enxergando como tudo na nossa vida está interligado. Na vida real, não há fragmentação. O que acontece é que não nos atentamos às conexões. Esse olhar fragmentado nos tira a força que teríamos para lutar contra o sistema que mantém a sobrecarga na classe trabalhadora.
“Esse capitalismo, que é patriarcal e machista, vai tirando a capacidade de articulação [das pessoas]. Pra gente tirar a força disso daí, a gente não tem que bater em cada pedaço separado. A gente tem que bater nas articulações entre o capitalismo, o patriarcado, o racismo e a imposição da heterossexualidade como norma. Quando a gente consegue colocar uma agulhinha ali, a gente provoca um efeito”, assegura Míriam.
Sobre o golpe, para Míriam, “o que a gente tá vivendo é um chamado ‘voltem a seu lugar, queremos restaurar a ordem patriarcal, racista e conservadora’. E é contra tudo isso que estamos lutando quando lutamos contra o golpe.” Confiram!
Capitalismo e patriarcado, espaços privado e público
Míriam Nobre – A conjuntura atual revela a relação que o capitalismo tem com o patriarcado e com o racismo pra se sustentar. Um dos pilares é a apresentação do lugar das mulheres e o lugar dos homens, como se fossem lugares separados e hierárquicos, sempre em pares, que um vale mais do que o outro. Uma separação entre o espaço considerado privado e o público, entre a produção pro (sic) mercado e o cuidado com a vida, colocando que uma é de responsabilidade das mulheres e outra dos homens. Então, quando as mulheres não estão no espaço destinado a elas que é espaço do privado, do cuidado, elas estariam invadindo um lugar estranho, que não é o delas. Então, por isso, estão sujeitas a muitos ataques. Além desta separação do que é dos homens e o que é das mulheres, também tem uma separação dentro da mulher, aquelas consideradas santas e as consideradas putas. Tem todo esse imaginário da Maria e da Eva. E aí, essa separação coloca que tem algumas mulheres que são dignas de respeito e proteção e outras que não, que ficam subordinadas à violência. Esse processo é de muita naturalização. Parece que as coisas são dadas, são da natureza e não construções sociais para manter uma situação de desigualdade e injustiça.
A gente já sente isso há muito tempo, mas o fato da Dilma ser presidente – e estar no poder, está mexendo com o imaginário das pessoas e isso vai aparecendo com muita força. A imprensa foi construindo uma imagem da Dilma, com foto, fragmentos de fala, como uma mulher sem controle emocional para lidar com o país nesta situação que ele está vivendo, como se ela fosse histérica. Interessante que quando saiu uma foto da Dilma – que dizem que é uma fotomontagem – a gente foi olhando como que a mídia tratava várias lideranças, a Ângela Merkel, Hillary Clinton, Cristina Kirchner, sempre que as mulheres que estão no poder são transloucadas e tomadas pela emoção. Também, uma outra separação entre a emoção e a razão.
E aí, junto com esse ataque à Dilma, essa desqualificação como se ela não tivesse habilitada para esse lugar porque estaria tomada pela emoção, vem essa ideia de tentar dar uma legitimada no Temer, no vice-presidente golpista, dizendo que ele é mais apto porque tem o controle da situação e, ao mesmo tempo não passar uma imagem asséptica, só razão, acopla a figura do Temer à mulher dele, vendendo a imagem de uma primeira dama bela, recatada e do lar.
O que há por trás do “bela, recatada e do lar”
MN – Com essas três palavras, além de criar essa oposição entre as mulheres que estão no espaço público como transloucada e as que estão no espaço privado como no seu lugar, recatada, ainda apresenta uma ideia de padrão de beleza de uma mulher loura, alta, retomando a ideia de quem é bela é quem tem esse padrão.
E, além disso, retomando essa coisa “do lar”, uma expressão que esconde todo o trabalho doméstico que a gente faz e como ele é essencial para a vida das pessoas e pra economia, e também que invisibiliza o nosso trabalho como agricultoras ou como mulheres que trabalham no comércio familiar. Muitas vezes pra agricultora, diante de um questionário do INSS, colocava lá “Do lar”. Retomar essa palavra que a gente praticamente tinha tirado do vocabulário, inclusive de instituições, é uma ofensiva conservadora de tentar colocar as mulheres no seu lugar.
O que a gente tá vivendo com o golpe é um grande retrocesso às conquistas que as trabalhadoras, as pessoas pobres, negras, indígenas tiveram neste período – e que querem muito mais. É um chamado de “voltem a seu lugar”, “queremos restaurar a ordem patriarcal, racista e conservadora”. E é contra tudo isso que estamos lutando quando lutamos contra o golpe.
Invisibilidade da mulher na base da pirâmide do capitalismo
MN – Uma das bases do capitalismo é a divisão do trabalho: quem tem os meios de produção, a terra, a fábrica, os instrumentos e aqueles que têm só a força de seu trabalho para vender. A gente sabe que, além da divisão social do trabalho, também há a divisão internacional. Nossos países acabam vendendo os produtos sem processamento, muita água e natureza para os países do Norte. E tem também a divisão sexual do trabalho. Tem um trabalho que é considerado produtivo, que muitas vezes é remunerado, que entra no circuito da venda e da mercadoria, e tem o trabalho que é a produção das pessoas, que é trabalho reprodutivo, que é todo o cuidado, essa disponibilidade que geralmente são as mulheres que têm pra não só prover seus filhos, companheiros, as pessoas idosas de roupa lavada, comida, casa limpa, mas também de afeto e segurança emocional.
Todo esse trabalho, que na maioria das vezes as mulheres fazem, é fundamental para o sistema se manter. Não tem como um trabalhador ir pra roça pela manhã sem não ter comido, não estar se sentindo bem, não ter segurança afetiva, tudo isso é muito importante. E todo esse trabalho fica totalmente invisível, não aparece como parte fundamental da economia, aparece como dom da natureza que a gente [a mulher] tem que fazer porque gostamos das pessoas com quem a gente convive. Então, não aparece como um trabalho que tem um significado econômico. A dedicação das mulheres para cozinhar, por exemplo, que requer resolver questões desde como ter lenha até onde encontrar comida diversificada. Isso tudo fica escondido, fica naturalizado e é bastante funcional para o sistema, porque uma fábrica pode não servir almoço para os funcionários porque eles vão trazer as marmitas de casa. Quem fez? Um posto de saúde pode não organizar direito como atender as pessoas que vão lá porque tem as mulheres que vão ficar na fila. Agora tem cisterna, mas quando não tinha, tudo bem, porque as mulheres iriam ficar na fila do caminhão pipa.
Tem todo esse não funcionamento do sistema que é uma forma de extrair mais riqueza do trabalho das pessoas passando uma sobrecarga pras mulheres. Então essa estrutura patriarcal é fundamental para o capital existir. Se a gente fosse desmontando essa estrutura, iria desmontando essa forma de exploração do trabalho. Isso aparece também na política que foi o que a gente viu naquele 17 de abril. Os deputados votando pelo golpe em nome de suas famílias, pela manutenção dessa estrutura patriarcal que garante a eles a manutenção de privilégios materiais, de ter sempre a sua roupa lavada muito provavelmente por uma empregada doméstica, por uma mulher – espero que com seus direitos trabalhistas assegurados! – com uma outra mulher que gerencia, que assume a responsabilidade sobre isso. Além de privilégios afetivos das próprias companheiras, quanto como de amantes ou de mulheres em situação de prostituição. É todo um exército de mulheres que funciona para um deputado ir lá e reforçar o voto neste golpe para que essa estrutura se mantenha e que, para mim, os privilégios materiais e afetivos deles continuem existindo. Totalmente uma privatização da política, colocando seus interesses pessoais em primeiro lugar e não como ideia de republicanismo.
Fragmentação das ideias a partir do capitalismo
MN – Isso é uma dinâmica que tem no capitalismo, sempre essa coisa da fragmentação, separar, colocar em pares opostos. Separa a esfera do político, do econômico, do doméstico. E a gente está sempre tentando colocar as nossas demandas como a da creche. As crianças não são responsabilidade só da mãe, só da família e no espaço doméstico, é uma questão pública, política, então eu formulo isso como uma demanda e coloco isso no debate, mas eles sempre tendem a reprivatizar as questões, voltar para o espaço doméstico, e com isso despolitizar o debate. Isso acirra muito nos momentos de crise, a gente vê isso em outros países também. Por exemplo, com essa ideia de uma família tradicional – o homem é o provedor e a mulher cuida da casa. Se o homem está desempregado, é um problema. Se a mulher está desempregada, não é.
Vemos que o desemprego é uma variável que eles mexem pra cá e pra lá. Quando querem dizer que a taxa de desemprego tá menor, eles ficam com bastante discurso de família, família, família, que eu penso não tô desempregada, eu tô cuidando da minha família. Quando a gente consegue ter momentos em que a classe trabalhadora está mais à frente, colocando as suas questões, a gente vê que muitas mulheres começam a se identificar como desempregadas, sou uma trabalhadora que está procurando emprego, é uma questão de acreditar que é possível.
Então esse reforço à família pra crise do capitalismo ajuda muitas coisas, ajuda a diminuir a taxa de desemprego, repassa as responsabilidades, que deveriam ser do Estado para se resolver com recursos públicos, para as mulheres para cada uma resolver em sua casa. De repente é uma creche pública, mas que pra funcionar as mães têm que ir lá dar dia de trabalho, têm que fazer rifa pra conseguir juntar dinheiro pra lá. Então vai repassando o que são atividades do Estado para o âmbito privado, passando mais responsabilidade para mulheres.
É bem importante estar atenta, porque eles fazem disso um jeito pra criar uma divisão entre nós trabalhadoras. Às vezes, tem uns trabalhadores que ficam iludidos e dizem “vocês ficam falando essas coisas das mulheres pra dividir a classe”. E a gente diz “não, é o contrário. Quem tá dividindo é o sistema capitalista que vai impondo todas essas responsabilidades e sobrecargas para as mulheres”.
Enxergar as relações entre as coisas para transformar a realidade
MN – Esse capitalismo, que é patriarcal e machista, vai tirando a capacidade de articulação [das pessoas]. Pra gente tirar a força disso daí, não tem que bater em cada pedaço separado. A gente tem que bater nas articulações entre o capitalismo, o patriarcado, o racismo e a imposição da heterossexualidade como norma. Quando a gente consegue colocar uma agulhinha ali, a gente provoca um efeito.
Uma das coisas que teve – justamente porque o sistema manipula muito as fragilidades que temos enquanto movimento – é que, ao termos uma certa ideia de que a classe vai fazer o processo revolucionário e a gente seguir [a classe], isso esconde a realidade de vida de mulheres, indígenas e negros, que não se expressavam naquela classe que era muito diversa, mas falava do ponto de vista de um operário branco. Ao ficar esse vazio, teve uma busca das pessoas de se afirmarem como sujeitas e acho que teve uma cooptação do sistema em relação a isso, impondo uma identidade fixa. A gente foi indo pra “sou uma mulher assim-assim”, fixando muito essa identidade e limitando. Só que quando as mulheres estão lutando, enquanto mulheres, negras, na luta real, tudo se articula. Acho que a gente tem que estar atenta a isso. Quanto mais vamos enfrentando as contradições, mas vamos percebendo as relações entre as coisas.