Osório (RS) – Tudo começou na década de 1980, período de redemocratização do país, através da atuação de ONGs, Sindicatos, Pastorais e movimentos sociais. Mas foi nas últimas décadas, especialmente na região Sul do Brasil, que a produção de produtos orgânicos da agricultura familiar ganhou impulso e ingressou em redes de supermercados, Ceasa, escolas e mercados de bairro.
O que muita gente desconhece, é que por trás desse processo há uma rede, que desde 1998 conecta produtores, técnicos e consumidores do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. É a Rede Ecovida de Agroecologia, organizada em 28 núcleos, mais de 200 feiras ecológicas, cerca de 4,5 mil famílias, e pontos de vendas diferenciados, como associações de consumidores. Um ponto forte de conexão da Rede Ecovida está no sistema próprio de certificação e garantia de produtos orgânicos, formatado em total acordo com a legislação brasileira. Enquanto favorece a inclusão de pequenos agricultores no mercado e viabiliza sua permanência no campo, essa articulação amplia o acesso, nas cidades, a alimentos saudáveis. Com essas credenciais, as organizações membro da rede estabeleceram contatos com universidades, parcerias com o poder público para projetos e atividades, entre outras iniciativas.
Para entender melhor o contexto desse trabalho, conversamos com o coordenador geral do Centro Ecológico, Laércio Meirelles. Nesta entrevista, ele conta em que estágio de desenvolvimento está a agroecologia na região Sul, e analisa quais políticas poderiam ser aprimoradas para a agricultura familiar. Para Meirelles o desafio está na comunicação com a sociedade, de forma que as pessoas percebam que a agroecologia é uma pauta de interesse geral, e o consumo de alimentos saudáveis, um direito básico do ser humano.
Quais são os principais gargalos no estágio que vocês conquistaram hoje? Embora exista uma diversidade regional grande, é possível apontar dificuldades comuns?
Temos conversado bastante sobre como identificar quais os nossos desafios para popularizar, massificar e ampliar as nossas experiências. Está claro que quando se nada contra a corrente, se gasta mais energia. As ONGs, como o Centro Ecológico, têm muito claro o papel de criar referência. E temos um baixo nível de ansiedade em relação à nossa capacidade de massificação.Temos 30 anos de história e ao longo deste tempo chegamos a pensar em cumprir um papel de multiplicar mais essas experiências e hoje estamos convencidos que ele não é nosso: tem de ser do Estado de governo. Infelizmente essas estruturas ainda têm comparecido pouco em função das nossas demandas. Talvez exagerando um pouco, posso dizer que na nossa área de atuação, já fizemos tudo no campo da agroecologia. É possível encontrar experiências produtivas super interessantes: horta orgânica muito bem manejada, sistemas agroflorestais, consórcios bastante audaciosos, famílias que estão produzindo há anos só com a luz do sol, sem insumos, só com os recursos que têm na própria propriedade, ou seja, com o custo lá embaixo e comercializando em circuitos curtos, cooperativas de consumidores, feiras locais, processamento caseiro ou comunitário de alimentos, sistema participativo de garantia, educação ambiental, mitigação de gases efeito estufa, etc. Está tudo aí! Só que precisa ser multiplicado e não trabalhamos numa terra vazia. Temos uma forte oposição, quer dizer, o agronegócio está bombando com políticas de apoio de crédito, assistência técnica, pesquisas, novas tecnologias, etc. Tudo isso está muito ativo, reduções permanentes de impostos para agrotóxicos, programas de renovação de maquinário agrícola, etc.
A agroecologia tem seu relativo apoio, mas é para poder nadar contra a corrente que vem furiosa na direção contrária. Cada vez mais agrotóxicos, transgênicos, nanotecnologia e apoio do Estado para agricultura convencional. Estamos crescendo, mas precisaríamos, para ampliar significativamente as nossas experiências, de uma assunção por parte do Estado mais efetiva na nossa proposta. Mas a responsabilidade não é só do Estado: temos pouca capacidade de comunicação com a sociedade. Talvez eu seja uma voz um pouco dissidente neste entendimento dentro do nosso movimento, pois não acho que a agroecologia é uma demanda explícita da sociedade. Apesar de estarmos convictos dos benefícios que a agroecologia numa escala mais extensa daria a sociedade, ela ainda é marginal no que diz respeito às demandas da sociedade.
A sociedade não tem ainda uma consciência mais coletiva sobre o assunto?
Ainda não está ligada neste assunto, se você elencar prioridades da população não aparece alimentos limpos, agroecologia ou cuidado com a terra. Nas famosas manifestações de junho de 2013 estava por acaso no Rio de Janeiro e não vi um cartaz sobre isso, pedindo mais agroecologia e menos agrotóxico. Nossas pautas não são expressadas pela sociedade, aí tem uma construção histórica que não está ao nosso alcance com todo um jogo que as grandes empresas fazem para manter as coisas como estão. Mas estamos buscando melhorar nossa capacidade de nos comunicarmos com a sociedade urbana. Quando a ANA e o III Encontro Nacional de Agroecologia (ENA) propõem a pergunta “Por que interessa a sociedade apoiar a agroecologia?”, que ainda está ecoando nos nossos ouvidos e estamos buscando respostas, é porque estamos com essa preocupação.
Em relação à comercialização, há um desafio grande na produção que esbarra nessa questão das políticas. Quais políticas estão com problemas e quais deveriam ser potencializadas?
Essas políticas de fomento à comercialização são interessantes para puxar a produção por parte do produtor. Uma política que cumpriu este papel de estimular a produção agroecológica da agricultura familiar é o Programa de Aquisição de Alimentos (PPA), que está em retrocesso total. O PAA está em processo de quase desmonte em relação à sua concepção original. Uma conquista à qual devemos estar muito atentos para evitar retrocessos é em relação às demais compras governamentais, sendo a feita no âmbito do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) a principal delas. Saindo da comercialização, que deveria ser muito mais ousada, é a Ater Agroecologia, ou seja, mais recurso para trabalharmos esse campo da geração e troca de conhecimento. O problema é que essa Ater é desenhada numa concepção que eu considero velha de assistência técnica e extensão rural. Tentamos dar um redesenho e fazer alguma coisa diferente, mas é muito aquém do que necessitaríamos. Precisa mais intercâmbio, mais horizontalidade entre os agricultores, para gerar e socializar tecnologia. Minha tese é que, embora precisemos de mais pesquisa, já temos informação suficiente para uma revolução agroecológica do ponto de vista produtivo. Já sabemos muita coisa, temos muita informação, experiência sistematizada, livros, teses, encontros acadêmicos, tanto da vida dos agricultores como da construção do conhecimento acadêmico. O que falta é mais capacidade de socialização. Por isso, apostamos muito nos intercâmbios, na troca de experiências, que esses mecanismos de Ater das chamadas de agroecologia ficam aquém e não nos permitem que sejam realizadas de forma mais massiva.
Na Rede Ecovida, tivemos um recurso para promover o intercâmbio entre núcleos, com viagens de até 600 quilômetros de distância. O resultado foi visível em termos de melhoramento das experiências e capacidade de ampliação e divulgação delas, a partir dos conhecimentos que foram trocados entre os diferentes núcleos. O Ater Agroecologia tinha de prever muito mais recursos nesse sentido.
Então recapitulando, o PAA e o PNAE pelo lado da comercialização, e políticas mais ousadas e criativas de Ater são políticas que consideramos chaves para o desenvolvimento, a massificação da agroecologia. Claro que sempre é necessário mais pesquisa, gerar informações que muitas vezes necessitam de uma pesquisa feita nos moldes ditos científicos. Aqui seria necessário rever o papel da EMBRAPA e das empresas estaduais de Pesquisa em relação à agroecologia. Há décadas dependemos de profissionais comprometidos que existem nestas organizações, mas já está na hora da Agroecologia ser assumida como uma prioridade por elas. É uma lástima que o interesse de mercado das grandes corporações envolvidas no agronegócio ainda contamine tanto nossas organizações de pesquisa.
E a cadeia de frutas nativas? Por que essa preocupação de valorizar os produtos nativos da região no Sul?
É agroecologia pura, porque são plantas que sempre existiram por aqui. Foram abandonadas e os consumidores ainda têm esse sabor na memória, além de no ponto de vista produtivo ser mais fáceis de inserir nos nossos sistemas agroflorestais. Considero que este trabalho de valorização destes cultivos locais, não são apenas frutas, tem sido certo clímax da nossa produção agroecológica. Temos o desafio de fazer chegar ao mercado e que tenha demanda por elas, mas os resultados iniciais são bastante animadores. Esses produtos têm um apelo emocional junto ao consumidor, com o sabor de infância da guabiroba, do butiá, jabuticaba, jussara, araçá, etc. Essas frutas foram abandonadas porque a maneira de produzi-las não é como a revolução verde gosta, arando, gradeando, usando adubo químico e baixo sol, são sistemas um pouco mais complexos. No manejo do que chamamos nossos sistemas agroflorestais, estas plantas se encaixam com precisão no desenho de um agroecossistema inspirado no ecossistema original. São vários elementos que quase nos convocam a trabalhar com elas, e para estimular a agricultura familiar o mercado cumpre um papel importante. Daí surge a cadeia solidária de fruitas nativas, que tem a ver com o estímulo à produção. Num primeiro momento tem quase a ver com colheita, o extrativismo, depois disso o plantio, processamento e polpa para vendê-la em forma de suco, geleia ou sorvete. Algumas inclusive são mais apropriadas para vender em polpa que in natura, como o butiá, que todo mundo gosta e tem sabor de infância. Esses produtos estão circulando em diferentes núcleos da Rede, e já são vendidos em sorveterias convencionais. É legal porque tem um apelo de mercado, que reverbera na produção e na conservação ambiental. É um ciclo virtuoso bem bacana.
Neste momento desfavorável aos movimentos, como é o diálogo de vocês com os governos locais?
Uma conjuntura bastante complicada, o governo federal com essas dificuldades que a gente tem acompanhado. O governo Dilma lançou o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo). Iniciativa louvável e necessária, contemporânea. Mas estas últimas crises políticas e econômicas tiveram reflexo direto nele, que ficou longe de ter sido executado na íntegra. Uma série de ações previstas, orçamentadas, com responsáveis, não foram executadas e o governo não vem nos dizer por que. Agora estamos na elaboração do Planapo 2 bastante preocupados. O Programa Nacional de Redução do Uso de Agrotóxicos (Pronara) não foi lançado até esse momento, o que é lamentável. Não é bonito o Brasil ser o maior consumidor de agrotóxicos do planeta.
O cenário federal está complicado, o governo do Estado também numa crise financeira e quase institucional. Mas temos de nos agarrar no meio das nossas grandes derrotas às nossas pequenas vitórias. No dia 3 de março foi lançado o Pleapo (Plano Estadual de Agroecologia e Produção Orgânica), que não deixa de ser uma boa notícia. Foi feito a espelho do Planapo, com suas peculiaridades do Rio Grande do Sul.
Nos 30 anos de trabalho nesse campo sou obrigado a lembrar que não era assim. Hoje você tem um Planapo, uma Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, o governo do Estado preocupado em fazer algo parecido na região, então não posso deixar de valorizar que hoje temos no campo da agroecologia um volume muito maior de apoio. Mais produção, mais circuitos curtos, profissionais envolvidos, consumidores interessados, um conjunto de políticas públicas aquém do que a gente gostaria mas que agora pelo menos existe. Se olharmos para o nosso mundo de atuação há 30 anos, abrimos um sorriso e percebemos um progresso. Mas se eu levanto a cabeça e olho para o mundo que está ao lado aí o sorriso fica mais tímido. O agronegócio não para de crescer, temos nossas vitórias mas elas são sem dúvida muito tímidas se comparadas com o que a agricultura convencional ganhou nessas décadas. Mas isto não nos desanima. Espero que não soe presunçoso nem arrogante, mas vou terminar dizendo que ser vanguarda, criar o novo e não aceitar simplesmente repetir o majoritariamente dito tem custos. Mas estamos acostumados, já são três décadas, assumimos estes custos e seguimos entusiasmados e esperançosos.