Por Eduardo Sá
Há cinco meses o pacato vilarejo de Regência, em Linhares, no litoral capixaba, sofre com a devastação ambiental provada pelo rompimento da barragem da empresa Samarco Mineração. Localizada na foz do Rio Doce com o oceano, a cidade criada por uma colônia de pescadores artesanais e conhecida por uma das melhores esquerdas do Brasil para o surf sofre com os impactos dos rejeitos tóxicos da subsidiária da Vale e da anglo australiana BHP. A comunidade foi visitada pela Caravana Territorial da Bacia do Rio Doce na manhã de ontem (12).
Desde o dia 21 de novembro, quando o rejeito da mineração do pior desastre socioambiental do Brasil chegou com os resíduos de Mariana (MG), a vida da Vila Regência mudou. Os moradores esperam mais transparência da empresa com laudos revelando os impactos, e que ela reconheça seu erro já que antes do rompimento que matou 17 pessoas e deixou outras vidas destruídas havia sinais de vazamento.
A empresa Samarco, segundo alguns moradores, está pagando cartões (salário mínimo mais 20% e uma cesta básica, além de mais 20% aos que têm dependentes) aos afetados, como pescadores, marisqueiras, comerciantes, etc. Alguns moradores não receberam, pois têm emprego fixo e, segundo o acordo estabelecido, não têm necessidade. Outros afetados reivindicam compensações, e até hoje a corporação não pagou nenhum multa nem ninguém foi responsabilizado.
As escolas e igrejas estão à frente na oposição, enquanto a maioria dos que estão recebendo está calada. A professora e enfermeira Luciana de Souza, de 43 anos, que mora no local desde que nasceu, chegou a estudar no exterior mas trabalha na escola e no hospital desde 1999 e milita em defesa dos nativos. Segundo ela, foi um processo de lesão econômica e aculturamento que está levando as pessoas a sair do seu território, principalmente os jovens, porque não há nenhum plano de pesca, surf e agricultura, que ficaram impraticáveis.
“A comunidade foi lesada nos seus direitos com a Petrobras, e agora com a lama estão todos desesperados. Querem ficar, mas não têm outra saída. Esse rio não é o da minha infância, é o absurdo que o progresso pode fazer. Estão tentando dizimar nossa vida, cultura, modo de viver, essência, mas vamos resistir enquanto tivermos força. Quem tiver de pagar, tem que pagar”, disse emocionada chorando.
A luz e a água encanada chegaram na década de 70, mas o esgoto ainda é realizado em fossas sépticas. De acordo com os dados do Programa Saúde Família local, cerca de 1100 pessoas moram na região. O cálculo é feito de acordo com as 400 e poucas famílias cadastradas, tirando uma média de três pessoas em cada. Na Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Vila Regência estudam atualmente cerca de 230 alunos onde há capacidade para 600. Segundo a diretora, já chegou a ter 400 alunos até a saída da Petrobras, que teve um impacto grande e agora ficou ainda pior.
“A saudade de todos é de comer peixe, temos e não podemos. É o medo de contrair doenças no médio e longo prazo. A luta principal agora é buscar a verdade em relação à água distribuída na vila. São vários laudos e não chega a um denominador comum. Temos uma relação de amor com o rio, é nossa história, e fugir dele é fugir da nossa essência”, disse a professora.
Alguns moradores criticam que a Samarco não ouvia a comunidade, somente os representantes da associação que atende seus associados. Muitas reuniões foram realizadas sem eles, e a impressão é que as decisões já haviam sido tomadas e eram apenas confirmadas dando aparência de participação e autorização dos impactados. Há relatos de famílias ganhando mais com os cartões da empresa, portanto acomodados com a situação, mas os mais críticos dizem que a compensação não é permanente e a economia local não voltará ao normal no médio prazo com a empresa deixando essas pessoas desamparadas.
Surf, Turismo e Pesca
Embora a vila seja caracterizada pela pescaria, devido à sua beleza natural e as ondas perfeitas da Boca do Rio o turismo e o surf se tornaram as principais economias nas últimas décadas. A pescaria, inclusive, está associada ao turismo na medida em que os pratos típicos vindos do mar e do rio são oferecidos aos visitantes nos restaurantes e pousadas. A agricultura familiar também é importante, e ficou sem água para irrigação.
De acordo com Diego Roldão, surfista de 23 anos, nascido e criado na vila, a melhor parte da onda não tem mais porque as bancadas que se formam na foz do rio com o mar estão menos frequentes. Na última semana deu onda e a água clareou por conta da correnteza, então muitos fissurados se arriscaram a surfar.
“Mas o vento mudou e a água voltou a ficar suja. Não sabemos se com a mudança de cor da água pode cair ou não. A gente não sabe o que fazer, porque não temos condições de ir a outros lugares. A ministra do meio ambiente disse que teria uma pessoa para nos orientar e que os órgãos atuariam juntos, mas não aconteceu nada disso. Falaram na TV e foram embora”, lamentou o surfista.
Alguns dermatologistas disseram que o banho não faz mal, ao contrário de ingerir o peixe, só que quando a pessoa toma uma “vaca” ou uma onda forte na cabeça acaba bebendo água ou entrando pelo nariz. Existem relatos no hospital local de pessoas sendo medicadas por conta de vermelhidões, manchas nas peles e erupções cutâneas, por conta do contato ou ingestão da água.
As etapas de surf estão sendo canceladas, e a associação local de surf está disponibilizando uma van aos associados para prática do esporte nas praias próximas, como Pontal e Uruçuquara. Mas nem todos têm condições de bancar a mensalidade da entidade. Tinha escolinhas e competidores locais também.
O impacto no turismo foi ainda mais drástico, porque não existe a possibilidade do deslocamento. O rapaz que aluga caiaque no píer do Rio, disse que desde o acidente não alugou mais nem fez nenhuma trilha. Nas pousadas não foi diferente, ainda segundo o surfista. “O turismo caiu 100%, minha mãe tem uma mini pousada e fim de semana passado deu três pessoas onde dava até cem. Assim os funcionários da região vão sendo demitidos, e o pescador não tem como vender peixe para oferecer a comida típica aos visitantes”, desabafou, ele que também recebia dinheiro ajudando no empreendimento e não tem cartão de pescador para receber da Samarco.
O surf, turismo e pesca são as principais formas, além da escola, de tirar a juventude das drogas. Há uma preocupação geral com a possibilidade de muitos saírem da cidade por conta disso, ou caírem no alcoolismo e no crack, dentre outras drogas. Outra preocupação é que, como a carne está muito cara no mercado e a pesca faz parte da vida dessas pessoas, ainda tem gente comendo e vendendo peixe. Principalmente os pescadores, pois além do costume arraigado muitos defendem que poucos peixes morreram na foz: acreditam que desceram mortos no rio. A situação de quem vivia da pesca do camarão e outros frutos do mar é ainda mais crítica.
Debate na praça
Durante o ato da Caravana na praça, o agricultor Jorge Grameliche, do assentamento Sezinio de Jesus, do MST em Linhares, destacou que não é só o pescador que depende do Rio e a lama acabou com o turismo. “Em Colatina tem 10 mil processos no Fórum, e são mais milhares de afetados. Tem que brigar e lutar, levamos bomba lá mas nossa lagoa não foi afetada. Temos de nos unir, essa desgraça dessa lama vai levar anos para sair e o rio voltar a dar dinheiro para a gente. Esse dinheirinho da Samarco está comprando gente para ficar calado. Mas é a minoria, e quero ver quando ela cortar esse dinheiro”, alertou.
Aos 78 anos, Simeão é pescador desde criança em Povoação, comunidade em frente à vila só acessível de barco. Segundo ele, a situação é de desespero nas comunidades. Toda a rotina na pesca e agricultura foi alterada, e os órgãos governamentais foram fracos pois a empresa já tinha sido notificada. “Quanto vale o Rio Doce? Falam em indenização, mas quanto vale nossas recordações e sentimentos? Como vão recuperar o rio, se destruíram tudo? As matas ciliares, nossa água, nossa vida. Quantos anos vai levar para recuperar? Estão comprando a gente com um salário, muitos recebem para ficarem calados porque precisam”, criticou.
Simeão já foi ameaçado por fazendeiros da região por suas denúncias, e defende que os moradores devem ir as ruas passar seus sentimentos às autoridades. Teme, no entanto, que a empresa os ameace depois pois estão pagando para não reclamar. “Não participamos desse acordo, a empresa está cumprindo porque a justiça determinou e vai sair barato para ela. Mas ninguém sabe como será no futuro, eles vão deixar tudo degradado. Os jovens vão ter de conviver com isso”, disse indignado.
Índio guarani da aldeia Boa Esperança, em Aracruz, Toninho defende a mobilização social para reivindicação dos seus direitos. “Se ficarmos esperando a empresa pode sufocar nossa garganta, e a gente pode não conseguir falar o que precisamos. Por isso tem que ir à luta, pensar o que podermos fazer através de alguma autoridade para parar a destruição dessas grandes empresas. O Ibama não está conseguindo, e os juízes não defendem os direitos das comunidades como deveriam. Quando uma autoridade defende uma empresa e não cidadão como está na constituição, é crime. Temos denunciado a nível nacional, porque aqui não adianta”, concluiu.