Por Najar Tubino, da Carta Maior
Assentamento coletivo 14 de agosto, Ariquemes (RO) – Rondônia é o retrato da colonização trágica que os militares implantaram nas décadas de 1970 e 1980 na Amazônia, como forma de resolver os conflitos agrários nas regiões sul e sudeste. É uma história de centenas de mortes- na verdade ninguém sabe quantas pessoas morreram e foram enterradas na mata-, da floresta destruída pelos correntões, da migração de milhares de pessoas em busca da terra prometida e da luta por reforma agrária. Neste março histórico de 2016 a Caravana Agroecológica percorre dois assentamentos na região leste do estado – o 14 de agosto e o Padre Ezequiel, um dos ativistas da reforma agrária assassinado em 1984 por pistoleiros em Cacoal, quando intermediava um conflito.
Em 2015, Rondônia registrou o maior número de mortes no campo – 20, segundo a Comissão Pastoral da Terra – e 22 segundo os relatos que escutei por aqui. Na verdade, contando os três meses de 2016 já são 27 mortes. Em Rondônia existem mapeadas 88 áreas de conflito, envolvendo 4600 famílias. Na maior parte deles, a organização é dispersiva, de pequenos grupos locais, nenhum ligado ao MST ou ao MPA, que possuem atuação forte na região. Dos mais de 100 assentamentos do estado construídos nos últimos 15 anos, 17 são ligados ao MST. A expansão do agronegócio com a liderança da pecuária – rebanho de 13 milhões de cabeças – e o crescimento da soja nos últimos anos acirraram os conflitos. Os fazendeiros estão tomando áreas de posseiros já instalados na terra. Os madeireiros invadem as reservas naturais, de extrativistas, seringueiros ou territórios indígenas, como é o caso da TI Uru-Eu Wau Wau.
O Território de Rondônia foi cobaia da ditadura para implantar o modelo de colonização, que quase destruiu uma parte importante da maior floresta tropical do mundo. Entregou a colonizadoras particulares grandes áreas no Mato Grosso, depois da divisão e criou o INCRA para implantar o quadrado burro, o modelo que definia as linhas dos lotes a cada quatro quilômetros e um eixo a cada oito quilômetros. No meio uma agrovila onde os colonos fixavam as suas residências. Da especulação imobiliária, da grilagem de terra, da migração forçada surgiu o atual estado de Rondônia, onde 175, 8 mil pessoas migraram internamente entre 2000 e 2010, conforme dados do coordenador do MST, Luiz Roberto de Oliveira. Sem contar os quase 60 mil que trabalharam na construção das hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio.
Lema da ditadura: homens sem terras para terras sem homens
A BR-364 foi sendo asfaltada durante os anos 1970 e 1980 e se tornou a principal via de acesso dos migrantes em busca da terra. O lema da ditadura era: “homens sem terra para terra sem homens”. As comunidades tradicionais, os indígenas e os posseiros não existiam nos mapas oficiais. Olavo Nienow é um ativista luterano que está há 35 anos na região. Ajudou a construir a CPT (1975), participou do movimento de justiça e não violência foi preso acusado de ser um dos mentores de um conflito de terras na Fazenda Capixi, no sul do estado, a porta de entrada dos migrantes.
“- Em Rondônia se instalaram duas colonizadoras, dos irmãos Melhoranza, de São Paulo e a Calama, que vendia lotes de dois mil hectares. Mas era área devoluta. Depois veio para cá um coronel do exército que assumiu o INCRA e disse que os lotes seriam de 100 hectares. Quando os posseiros começaram a ver que eles não tinham registros, começaram a demarcar as terras por conta própria. E os conflitos se acirraram”, conta ele.
A contradição maior envolvendo a questão da terra em Rondônia: todo o território pertence à União, e quando o Estado foi criado, ganhou apenas uma porção mínima de 100 hectares onde foi construído o centro administrativo em Porto Velho. O fato é que até hoje muita gente assentada na época da ditadura ainda não tem título: os fazendeiros, porque a pecuária virou a maior atividade do agronegócio, compraram muitos lotes desses migrantes e agora voltam a pressionar os posseiros, que também não têm documentos. A soja empurra a especulação nos municípios de Cujubim, Buritis e Machadinho do Oeste, onde estão 16 das 21 reservas de Rondônia.
Assentamento coletivo na Amazônia
A BR-364, nesta época está entupida de carretas com dois vagões carregadas com a soja e o milho do MT, seguirão descarregadas nas barcaças em Porto Velho e seguirão via hidroviária até o porto Itacoatiara, no Amazonas. Um comboio rebitado, que provoca acidentes fatais diariamente na rodovia, que não tem acostamento. É a loucura do agronegócio, pela redução de custos e para entregar a soja aos chineses. Em meio a esse contexto um grupo de 80 agroecologistas percorre os municípios de Ariquemes, Jaru e Mirante da Serra e contar a história do povo, que ficou 20 anos lutando pela terra e hoje apresenta uma produção de alimentos de verdade, sem agrotóxicos e com uma organização, que não existe nos livros de história desse país.
É o caso do Assentamento Coletivo 14 de agosto, localizado a 130 km de Ji-Paraná, a cidade polo mais perto – região leste de Rondônia. Na realidade são três assentamentos que ocuparam a Fazenda Shangrilá. O 14 de agosto reúne 10 famílias organizadas de forma coletiva, onde tudo é dividido, desde as frentes de trabalho na agricultura, na produção de leite, na horta, no sistema agroflorestal. É muito mais do que isso, como conta Ana Izabel de Magalhães Ramado:
“- A experiência coletiva sempre fez parte das discussões, desde a época do acampamento. Nós entramos na área a primeira vez em 1992 e fomos expulsos muitas vezes. Mas foi um debate lento e tranquilo. E por etapa. Primeiro na criação dos bois, depois na horta e em 2003 resolvemos juntar as panelas. Analisamos que o trabalho tinha avançado, do ponto de vista cultural, humano, de debate sobre a sociedade em que vivemos, sobre a exploração do capitalismo, do pobre que não tem outra opção a não ser vender a sua força de trabalho”, relata ela.
Cozinha coletiva e trabalho coletivo
Juntar as panelas na vida real, cada um traz a panela que tem. Construíram a cozinha coletiva de madeira, coberta com palha de babaçu na varanda. De segunda a sexta fazem todas as refeições na cozinha, somente no fim de semana usam a moradia individual. Os trabalhos são divididos em frentes, como a de serviços gerais, criação de animais e horta. A mudança também modificou a educação das crianças, que passavam a ser cuidadas por um responsável, enquanto os outros trabalhavam. As famílias dividem uma área comum de 144 hectares com uma área de reserva de 89,5 hectares, onde tem muito babaçu. As famílias tem um lote de 12 hectares, mas ninguém sabe onde fica, porque eles nunca demarcaram.
Têm dois núcleos residenciais, um perto da BR-364, onde estão os piquetes de pasto do gado leiteiro, que no início foi roubado, porque não havia uma casa perto. Outro fica perto da cozinha coletiva, da farinheira. Izabel e Leôncio Onofre Santana, encarregados de fazer o relato à Caravana Agroecológica contaram algumas dificuldades para convencer o INCRA da disposição do grupo de viver coletivamente. Mais dificuldade na hora de ir ao banco e falar ao gerente que tanto poderia ser uma família, como outra, na hora de definir os empréstimos.
Nível de conscientização política avançado
Embora tenham esperado 16 anos até conseguir um documento oficial de posse da terra, eles sempre se movimentaram na busca por direitos e de construir a infraestrutura do assentamento. Mantém uma escola municipal, os 13 jovens acima de 20 anos, que moram na comunidade, seis estudam fora, incluindo o Rio Grande do Sul e a Paraíba. Os filhos nasceram no assentamento, acompanharam todas as lutas e seguem a mesma trajetória. Todos participam do MST e de outros movimentos sociais. O nível de conscientização política do grupo é muito avançado. É uma história inédita no país, mas com uma força de transformação muito grande. É um exemplo real e verdadeiro.
Fred Santana, de 20 anos, filho de Leôncio, cursou Teoria Política Latino-americana na Fundação Florestan Fernandes e explica como é possível trabalhar no campo e participar da militância política:
“- Os jovens hoje em dia é que tocam as tarefas do assentamento. Mas o que garante a minha militância é o coletivo, porque sei que posso sair e voltar e a horta não estará abandonada, ou o feijão que precisava colher foi colhido. Para nós é fácil arrumar um emprego em Rondônia, somos sempre assediados, para trabalhar em supermercados ou nos frigoríficos – 19 mil trabalhadores no estado. Mas eu não preciso de emprego, já tenho o meu.”
Fred e outros 80 a 100 jovens dos assentamentos de Rondônia estarão reunidos entre os dias 18 a 20 de março na região para discutir os problemas da reforma agrária popular, que eles querem implantada no Brasil, talvez um sonho das próximas décadas até chegar lá. O capitalismo quer extinguir o campesinato, diz ele, mas vamos resistir, estamos mostrando a nossa força e continuaremos lutando. O coletivo 14 de agosto montou uma feira agroecológica em Jaru, a 30 km do assentamento, todas as sextas-feiras à noite. Também comercializa 35 cestas aos consumidores de Ariquemes, que são amigos solidários, já chegaram a pagar por três, quatro meses de consumo futuro para apoiar a horta comunitária e sem veneno.
(*) Créditos da foto: reprodução