Por Najar Tubino, na Carta Maior
Areial (PB) – Cinco mil mulheres agricultoras se reuniram ontem hoje nesta pequena cidade de sete mil habitantes, onde o solo é uma areia branca, para protestar contra a violência, a impunidade, por uma sociedade mais justa, contra a tentativa de golpe das elites brasileiras e pela agroecologia. Essa é a VII Marcha pela Vida e pela Agroecologia, novamente ocorrendo num momento político tenso. No ano passado, a prefeitura que apoiava o evento ameaçou retirar o apoio na última hora, porque a Marcha ocorreu no dia 12 de março, após as demonstrações de ódio explícito na Avenida Paulista. Mas não é um simples acontecimento, embora a prefeitura de Areial tenha decretado feriado. Trata-se de uma demonstração de força e poder de mulheres que antes buscavam água barrenta por quilômetros, com uma lata na cabeça.
Eram destratadas pelos governantes e muitas vezes pelos próprios companheiros. A Paraíba está na sexta posição no Mapa da Violência e João Pessoa está em terceiro lugar entre as capitais mais violentas. Nos últimos 10 anos, 43 mil mulheres foram assassinadas no Brasil. No ano passado foram 50 na Paraíba. No último fim de semana, outras duas foram mortas. A Marcha tem dois momentos: um de denúncia, outro de afirmação. A concentração iniciou na zona rural, no sítio Areial II, em um campo de futebol. Setenta ônibus trouxeram comitivas de outros municípios, dos 14 que compõem o Polo da Borborema.
Cinco mulheres comandam os sindicatos
Uma região com tradição de luta camponesa, onde Margarida Alves foi assassinada por um tiro de escopeta 12 na década de 1980, depois de ser a primeira presidenta de um sindicato de trabalhadores e trabalhadoras rurais – no município de Alagoa Grande. Hoje, cinco mulheres comandam os sindicatos. Porém, o Polo é muito mais do que isso. São mais de 150 associações de comunidades do campo, onde já foram instaladas quase 10 mil cisternas de placa e 1600 cisternas de produção. Trabalho organizado pela ASA, pela organização social AS-PTA, que está presente na Paraíba há 20 anos, pelo Coletivo Estadual de Mulheres do Campo e da Cidade e por vários outros movimentos. Um trecho da convocação:
“- Em nome de Ana Alice, jovem agricultora militante do Polo, brutalmente violentada e assassinada em 2012 e de milhares de mulheres que todos os dias são vítimas de violência, cobramos o fim da impunidade dos crimes contra a mulher. Afirmamos que as desigualdades entre homens e mulheres e a violência constituem um forte bloqueio para que a agricultura familiar se consolide como modo de produção e de vida para as famílias agricultoras do território da Borborema”.
Uma rainha afrodescendente
Em volta do campo de futebol algumas tendas, dois carros de som. No palco as apresentadoras vão ensaiando os gritos de luta, as músicas da marcha e a ciranda, que logo depois Lia de Itamaracá, uma afrodescendente de 72 anos, que já percorreu o mundo cantando irá embalar. Lia é alta, esguia, descendente de africanos da Guiné Bissau, do povo Djola. Veste um vestido branco, bordado com uma fita azul, parece uma rainha e tem uma voz firme e forte, como de Benedita de Jesus.
Os grupos de mulheres, crianças, idosos, homens chegam a pé, caminhando pela areia com cartazes, faixas, camisetas da marcha. O sol está quente, mas o planalto da Borborema sempre alivia o calor com um vento, às vezes, fresco. ”Somos Lula e Dilma”, diz o cartaz da Juventude de Remígio. Não vai ter golpe está em vários cartazes. O clima é emocionante, a cada fala, uma canção.
“- Pra mudar a sociedade/do jeito que a gente quer/participando sem medo de ser mulher/ porque a luta/não é só dos companheiros…pois sem mulher/ a luta vai pela metade/na aliança operário e camponesa/participando sem medo de ser mulher/pois a vitória vai ser nossa com certeza/participando sem medo de ser mulher.”
Quando a gente luta sempre consegue
Roselita Vitor da Costa, de Remígio é uma das coordenadoras do Polo da Borborema. Para ela, a Marcha das Mulheres é a maior expressão do movimento feminino na Paraíba, talvez do Brasil. As mudanças na maneira de produzir, a responsabilidade de assumir as tarefas ao redor de casa, os ensinamentos da agroecologia, o acesso à água de beber e de produzir, a implantação das políticas públicas que apoiaram a agricultura familiar tudo isso se expressa em maior participação política e social. Roselita cita a rede de 1300 agricultoras experimentadoras, da produção comercializada em 10 feiras agroecológicas no Polo, na melhoria da renda. Enfim, conseguiram um novo papel para a agricultora camponesa, com força e valorização.
É o que diz outra agricultora, Ligória, dando um testemunho no palco:
“- Eu planto, colho, trabalho na construção civil como ajudante de pedreiro e não tenho medo de enfrentar a luta, porque quando a gente luta, consegue. Vou continuar marchando”.
Agronegócio sempre ameaçando
Zeneide Balbino é a presidenta do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras de Areial, também promotor da Marcha.
“- Nós precisamos valorizar o que nós temos no Polo – as nossas sementes crioulas, sementes da paixão, as galinhas capoeiras. Porque já tem empresas querendo trazer raças de fora, que precisam de ração, de milho transgênico. Temos que defender o nosso projeto de agroecologia, que está sendo ameaçado pelo agronegócio”.
São 82 bancos de sementes na região. O agronegócio já tentou de várias maneiras desestruturar a agricultura familiar, desde incentivar o plantio de tabaco até varrer as plantações de cítricos, que estão localizadas na área do território chamada de brejo úmido, com inseticidas e fungicidas, quando sofreram um ataque da mosca preta. Foram bloqueados pelas associações e sindicatos. Mesmo assim, grande parte do Polo ainda é ocupada por grandes fazendas de pecuária ou de cana – 254 ocupam 43,6% da área, enquanto 8.842 estabelecimentos apenas 3,2% da área. Na definição do Ministério do Desenvolvimento Agrário o Território da Borborema é composto por 21 municípios e conta com 21 mil estabelecimentos da agricultura familiar, que ocupam área entre 2 e 10 hectares.
No teatro o homem vive o pesadelo de ser mulher
Nailde de Lima é separada, têm dois filhos, o ex-marido está em São Paulo. A separação ocorreu por sucessivos abusos violentos. Mas ela não consegue assumir a terra que plantava quando era casada no assentamento Veloso, onde vivem 31 famílias, em Casseringe. Lá, Maria Celina é a presidenta do Sindicato. E vieram para a Marcha em quatro ônibus. Leônia Soares, de Maçaramduba comenta que o machismo ainda é muito presente no meio sindical e que as mulheres precisam assumir esses espaços de poder para valorizar o trabalho das agricultoras, que sempre são sobrecarregadas com as atividades domésticas, de cuidados dos filhos, além do trabalho no quintal e no roçado.
A Marcha deveria sair do Sítio Areial II às 10 horas. Já são quase 10h30min e ainda rola uma peça de teatro no palco. O agricultor Biu está sonhando que assume o papel da mulher, enquanto ela desfruta das delícias de ser o dono da casa – pega o dinheiro ganho na venda das galinhas e vai descansar um pouco a cabeça no bar. Daí ele acorda, e sente que viveu um pesadelo. E as mulheres em coro: esse é o nosso dia a dia. Um pesadelo.
Nunca olharam para as pessoas mais pobres
Roselita Vitor da Costa promove o último diálogo com as mulheres: quem já passou fome e sede aqui presente. A maioria levanta as mãos. Quem já teve que ir buscar água barrenta com lata na cabeça. A maioria responde sim. Quem tem cisterna de água para beber? Praticamente todas levantam as mãos. Quem recebe bolsa família? Quase todas. E quem tem filho na universidade? Algumas levantam. E vocês acham que isso aconteceu por quê?
“- Porque essas melhorias são resultado de um governo que tem olhado pra as pessoas mais pobres desse país. A gente não pode esquecer disso. A elite brasileira não admite que filho de pobre estude em universidade e que eles possam viajar de avião. A imprensa e a televisão ficam manipulando as pessoas, dizendo que o problema é a corrupção que só acontece no governo do PT. Nunca falam dos outros governantes. Porque nunca olharam para a gente. Nós iremos para a rua novamente para defender as políticas que beneficiaram o semiárido e mudaram as vidas das pessoas e das mulheres”, disse ela.
Daí a Marcha sai da areia por uma estradinha de chão, por entre sítios da agricultura familiar, plantações de batata doce, mandioca, palma forrageira. Um pé de jaca carregado . Entra na Rodovia PB-121 ocupando as duas pistas e segue até a Praça Central de Areial. A população nas calçadas, em cima de muros, nas lajes, em todo canto vibrava com o movimento, a cantoria, os gritos de luta das mulheres do semiárido, que neste dia 8 de março mais uma vez fizeram a história desse país.