IMG_0053Por Eduardo Sá,

Brasília (DF) – Desde o descobrimento do Brasil os indígenas sofrem com o genocídio de seus povos. São mais de 500 anos de opressão, e hoje o cenário não é muito diferente. Apesar dos avanços no processo de articulação das suas organizações e da criação de algumas políticas públicas, do ponto de vista institucional na luta por seus direitos a conjuntura não é das melhores. Com a bancada ruralista cada vez mais fortalecida nos últimos anos, são várias ações contra as suas reivindicações, como a PEC 215 e a CPI da Funai. Embora sejam os guardiões das florestas, com modos sustentáveis de lidar com a natureza, o modelo de desenvolvimento nacional vai contra suas vidas e valores.

Os conflitos com fazendeiros e remoções de suas famílias por conta de grandes empreendimentos do governo são seus principais desafios. O direito a terra e formas dignas para nelas permanecerem continuam sendo as necessidades fundamentais dos indígenas. Para traçar um panorama nacional sobre os nativos conversamos com Juan Scalia, da Coordenação Geral de Etno Desenvolvimento da Funai, que cuida do direito a terra, produção, saúde, educação e demais demandas dos povos tradicionais. Para ele, é preciso fortalecer a autonomia dessas populações. Scalia falou ainda sobre a importância da agroecologia e o fortalecimento da agricultura familiar nas aldeias.

Apesar de diverso e complexo, dá para traçar um panorama geral do atual cenário indígena no Brasil?

O Brasil tem mais de 300 etnias, são mais de 270 línguas. Algumas etnias já perderam as suas e outras estão em processo de revitalização. Temos aproximadamente 680 terras com processo de regularização iniciado ou concluído, que significa inclusive com o decreto de homologação da Presidência da República e o posterior registro no Serviço de Patrimônio da União (SPU). Temos ainda uma demanda de aproximadamente 300 reivindicações fundiárias, que são qualificadas e passam por análise da Funai. Nem todas serão necessariamente terras indígenas, mas dá um passivo relativamente grande de terras a serem demarcadas. A constituição de 1988 colocou que o Estado Brasileiro tem o prazo de 5 anos para demarcar todas as terras, mas isso passa por falta de pessoal, de recurso, entraves políticos e jurídicos, forças políticas adversas, etc. Então não sabemos se tudo isso virará terra indígena ou não, pode ser que no processo a própria Funai diga que a reivindicação dos índios não procede.

Quais são os maiores desafios atualmente aos índios? A nível midiático, houve uma expressão muito forte que veio à tona com os Guarani Kaiowá e anteriormente o povo da Raposa Serra do Sol. Tem muita coisa ligada às hidrelétricas também…

Para quem não tem a terra regularizada, o principal entrave é o acesso a terra. Isso fica muito claro nos documentos do movimento indígena, nas reuniões nacionais de política indigenista têm focado muito nessa questão. Historicamente a Funai demarcou muitas terras na região norte, e mais recentemente tem feito alguns esforços maiores na região centro oeste e sul, como os próprios Guarani Kaiowá. Ali os entraves e forças políticas são maiores, então tem certa reação desses setores. Para quem está na luta pela terra é o principal, e para quem já tem a terra demarcada é o acesso a políticas de produção de agricultura familiar, sobretudo a Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater). Os índios têm pautado muito uma Ater diferenciada, que leve em consideração os conhecimentos tradicionais. Temos amadurecido várias parcerias com o Ministério do Desenvolvimento Agrário nesse sentido, mas tem muita coisa a ser melhorada. Tem também a questão das grandes obras que é complexa, sobretudo quando não há procedimentos formalizados de consulta conforme preconiza a Convenção 169 da Organização Mundial do Trabalho (OIT). Geralmente as obras são impostas e resta aos índios debaterem caminhos de mitigação e compensação gerados. Isso é comum em grandes hidrelétricas, rodovias e grandes empreendimentos em geral. Há uma gama mais ampla de políticas, como saúde, educação, previdência e programas sociais como o Bolsa Família, dentre outros. É preciso tentar adequar essas políticas ou criar novas específicas aos povos indígenas. Um exemplo é o índio ter que sair da aldeia todo mês para receber uma Bolsa Família, ao invés do desembolso ser trimestral ou semestral. Saúde e educação diferenciadas também. Essas necessidades variam de acordo com a sensibilidade dos órgãos.

Os índios praticam a agroecologia milenarmente, e estão se apropriando desse novo conceito. Como está se dando esse trabalho? Os krahô têm um trabalho forte com sementes crioulas, por exemplo.

O termo agroecologia tem vários princípios que a produção agroecológica já preconiza, e que estão permeados no modo tradicional de vida dos índios. Vários deles dizem: a gente não quer substituir um pacotão verde por um pacotão agroecológico, queremos que a agroecologia possa também entender os nossos modos tradicionais. Mas é inegável, por exemplo, que a produção de grandes castanhais não é somente porque os animais como uma cotia colocou a semente ali: há intervenção humana. Então grandes castanhais são produto de povos indígenas, que milenarmente estão ali modificando o ecossistema de maneira a produzir o alimento e sua subsistência.

Se por um lado tem gente que diz que não precisa de agroecologia porque nunca inseriu nenhum agrotóxico e tem um modo de vida muito mais sustentável, por outro há regiões (sul e centro oeste, por exemplo) onde entraram processos de lavoura mecanizada com plantios de soja transgênica. Isso é um desafio enorme para a Funai e os povos indígenas para reverter esses quadros, então tem matizes diferentes de como o tema da agroecologia e produção orgânica lidam com o tema indígena. Uma demanda que não vem de agora é a aproximação institucional desses espaços e políticas que fortalecem a agroecologia. Recentemente participamos do último Congresso Brasileiro de Agroecologia e constituímos uma comissão de indígenas lá representada, que tem derivado nessa aproximação com a Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (CNAPO) no sentido de abrir representatividade dos índios na Funai nesses fóruns. O tema da agroecologia não é novo, temos o exemplo da Associação do Movimento de Agentes Agroflorestais indígenas do Acre, que foi criada em 1996, então são quase 20 anos de um histórico e identidade com esse conceito da agroecologia. Outras várias experiências acontecem, mas estão invisibilizadas ou dissolvidas. O movimento indígena está tentando agrupar, visibilizar e intercambiar para fortalecer suas representações nos fóruns institucionais que debatem essas políticas.

Em termos de representação indígena, temos o histórico da participação das igrejas, depois o Estado e ONGs. Sempre houve uma tutela, com exceção do Juruna como parlamentar décadas atrás. Como os índios têm voz de uma forma mais autônoma?

Oficialmente a tutela cai com a nova constituição em 1988, eles hoje não são mais tutelados pelo Estado. A Funai passa a ser um órgão que coordena a política indigenista, então há essa mudança paradigmática de visão do Estado. Ao longo do tempo os indígenas têm conseguido organizar nas suas bases associações de aldeias ou terras indígenas, algumas cooperativas e organizações regionais como a Articulação dos Povos Indígenas do Sul (ARPIN Sul) ou APOINE que é do nordeste e a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB). A nível nacional tem a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), então esse amadurecimento foi se dando aos poucos dos locais até o nacional. A geopolítica indígena é muito complexa, são 300 povos, imagina quantas associações, mas tem tido avanços nesse sentido. O principal é a Comissão Nacional de Políticas Indigenistas, onde essas organizações regionais estão representadas numa comissão paritária de indígenas e estado brasileiro. Têm se inserido em outros espaços também, como o Comitê Gestor da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental em Terras Indígenas, e representações do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea), Conselho Nacional de Saúde, de Educação, etc.

A Funai já foi presidida por um indígena? E Parlamentar só o Juruna?

Nunca, temos coordenadores regionais indígenas. Parlamentar a nível federal só o Juruna, mas tem vários indígenas vereadores como os Xakriabá, no Rio Negro, no Acre tem vários, kaiapós, etc. Mas nessa geopolítica às vezes eles têm certa dificuldade de juntar votos para eleger representações como deputados estaduais, federais ou senadores. Isso também tem sido amadurecido pouco a pouco, eles têm tentado criar frentes de apoio com candidatos únicos para não pulverizar o voto. Porque saem muitos candidatos, e apesar de ter uma população grande não conseguem eleger. O próprio Mato Grosso do Sul é o segundo estado do Brasil com maior população indígena, depois do Amazonas, e terceiro vem o Pará. Se os indígenas conseguissem se juntar conseguiriam eleger deputados estaduais e até federais. Tem prefeitos indígenas em alguns lugares. Existe um Projeto de Emenda Constitucional, (PEC 320 ou 330), que estabeleceria o mínimo de 5 indígenas com deputados federais como se fosse uma cota de ação afirmativa na Câmara. Está em tramitação, não é uma novidade em termos de América Latina, outros países já têm como a Bolívia: na câmara, senado e na corte suprema de justiça deles, como o STF aqui.

Mas o que está na mídia brasileira é a PEC 215.

Os grandes meios veiculam as notícias e o que se pega dessas várias tentativas de fragilizar os direitos indígenas. Temos uma posição contrária a PEC 215 e isso tem sido colocado por várias pessoas dentro do governo, inclusive a Dilma e o ministro Cardoso. Mas estamos com uma legislatura bastante complicada e ofensiva contra os direitos indígenas, então o movimento tem tentado se mobilizar para bloqueá-la. Caso passe na Câmara há uma probabilidade alta de ser brecada no Senado ou talvez no STF, dado que é patente sua inconstitucionalidade.

Do ponto de vista institucional, a Funai é um dos poucos amparos que os índios têm. Como é vista uma CPI da Funai num cenário de conflitos permanentes entre os índios e os ruralistas?

A Funai tem a leitura de que essa CPI envolvendo também o Incra vem nesse conjunto de projetos para fragilizar os direitos originais historicamente conquistados pelos indígenas e quilombolas. É uma orquestração, não é uma iniciativa isolada, vem num conjunto para fragilizar a própria Funai e tentar passar a PEC 215. São temas conjugados e estratégicos. A CPI está abordando sobretudo as demarcações de terra, e sobre isso a Funai cumpre um papel de executivo de um direito garantido na constituição que tem regulamentação específica por meio de decreto (1775 de 1986) e a portaria 14 do Ministério da Justiça que o regulamenta. É um trabalho técnico feito pelos melhores profissionais, antropólogos que coordenam e equipes multidisciplinares de ambientalistas, topógrafos, cartógrafos, etc, para demarcar a terra. Então a Funai tem segurança do que tem feito e vai continuar fazendo, e tem todo um amparo jurídico e constitucional para continuar esse trabalho.

Temos poucos índios isolados do ponto de vista histórico, e a grande maioria já aculturada pela cultura branca. Como você vê o papel do índio na sociedade brasileira e como nossa sociedade recebe esse povo indígena? Qual a tendência no médio e longo prazo?

Esse debate sobre os processos culturais tem várias nuances, é bem complexo e filosófico. Não usaria o termo aculturado, os indígenas como em todo processo cultural vão se apropriando de novas tecnologias no intercâmbio com outras sociedades. Isso já acontecia, por exemplo, antes da colônia portuguesa. Os indígenas já intercambiavam cerâmicas e tecnologias de guerra. E não necessariamente porque o índio usa um celular está deixando de ser indígena, porque muitos utilizam para poder falar com a família e usam sua própria língua. Uma tecnologia pode fazer um processo de fortalecimento cultural, e não necessariamente de aculturação. Um palestino não deixa de ser palestino independente de onde ele está ou convívio que tem e tecnologia que utiliza. Os indígenas estão no facebook, por exemplo, e conversamos sobre os seus projetos de internet, como os pontos de cultura nas aldeias.

Como o exemplo dos quilombolas que estão mudando suas habitações para melhorias sanitárias, mas não perdem suas raízes culturais.

Os indígenas querem uma vida digna, ter condições para produzir na terra, ter uma boa moradia, o direito a educação e saúde, etc. Na moradia tem tido debates interessantes com o pessoal do Minha Casa Minha Vida para adaptar os financiamentos ou ajudas nas construções nas aldeias que fujam um pouco da lógica urbana com aquelas casas seriais iguaizinhas. Os indígenas, por exemplo, preferem ter o banheiro fora da casa. Preferem também utilizar outros materiais, ao invés de tijolo algo mais apropriado pela permacultura com barro e cimento, pau a pique ou bioconstrução. Então tem debates acontecendo e é o direito a uma moradia digna, que não significa perder a disposição originária da aldeia.