O Mato Grosso é o estado com maior produção de soja no país, cerca de 24 milhões de toneladas, e também o líder no consumo de agrotóxicos. A monocultura do algodão e da cana, além de grandes projetos com mineração, também caracterizam o estado. É nesse cenário que organizações de assessoria técnica atuam junto à agricultura familiar em busca de outro modelo de desenvolvimento: o agroecológico. Nesse sentido, várias organizações têm se articulado para potencializar formas de produção mais conectadas ao bioma cerrado.
Durante o evento de comemoração dos 15 anos do Grupo de Intercâmbio em Agricultura Sustentável (GIAS), rede agroecológica da região, em Cáceres (MT), conversamos com Fátima Aparecida, mais conhecida como Cidinha, coordenadora da FASE Educação e Solidariedade/MT. Há décadas ela atua junto aos agricultores e povos e comunidades tradicionais no Estado, e critica os impactos ambientais e territoriais que essas populações sofrem por conta do agronegócio. Na entrevista, ela também descreve as características regionais no estado.
Quais são os desafios da agricultura familiar no estado do Mato Grosso?
O principal é a ameaça do agronegócio em relação à expulsão dos agricultores de suas áreas, principalmente das comunidades tradicionais. A questão da falta de apoio do poder público, de acesso às políticas públicas, há muita reclamação dos agricultores em relação ao transporte, às estradas de péssima qualidade para a comercialização, etc. E do ponto de vista da agroecologia, como houve muito desmatamento os agricultores enfrentam dificuldades para produzir devido ao desequilíbrio ambiental. Nos assentamentos onde houve desmatamento para a implantação das pastagens, os agricultores que querem diversificar a sua produção encontram dificuldade por conta do fortalecimento do agronegócio com a cana de açúcar no entorno dos assentamentos. Então quando há uma praga, ela se fortalece porque tem alimento. As pragas que se alimentam das gramíneas passam a ter um banquete. Os agricultores agroecológicos ficam, portanto, com dificuldades de fazer o manejo de forma mais sustentável pelo fato de os insetos aparecerem com muito mais frequência.
Como os animais também não têm alimentos disponíveis na natureza como antes, eles vão se alimentar das roças e hortas dos agricultores. Às vezes não conseguem garantir programas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) por causa do ataque de animais silvestres, às vezes até do seu gado como aqui do pantanal. Em outras regiões há também o enfrentamento por causa do agronegócio, a pulverização área com agrotóxico, como no caso da região médio norte. E na região do Araguaia onde os fazendeiros fazem pulverização aérea na soja, na cana e no algodão e não respeitam as áreas dos assentamentos. Respeitam menos ainda as margens dos rios que passam nas áreas indígenas, e contamina as águas e os peixes que eles se alimentam. Então, o agronegócio traz muito impacto em todas as regiões do estado com cana, soja, algodão e pecuária. Aqui na região sudoeste e na baixara cuiabana, onde a Fase tem atuação mais direta, começamos a perceber que a entrada da soja em alguns municípios, inclusive com apoio dos prefeitos, tem trazido impactos: ameaça aos territórios das populações tradicionais e a contaminação dos córregos e nascentes do rio Paraguai, que é formador do pantanal.
Você falou muito sobre a questão da produção, mas como é a formação social no estado levando em consideração a colonização da região e atual expansão do mercado na região?
Tem regiões que foram colonizadas por sulistas, como é o caso da soja na região médio norte. No sudoeste há agricultores de todas as regiões do Brasil, o preço da terra tem se elevado e feito com que muitos comecem a vender suas terras para procurar novas fronteiras agrícolas na região noroeste do estado onde ainda há áreas com vegetação nativa e floresta amazônica. Outros continuam a migração para Rondônia, percebe-se que há muitas pessoas que voltaram a ser sem terra pelo fato de ter vendido suas terras. Não têm mão de obra, já que o casal chega numa idade que não consegue mais produzir ou permanecer no lote. Então tem uma venda dos lotes para vir para cidade, porque poucos jovens estão no campo e isso é um problema em todo o estado. E a falta de regularização das terras por parte do Incra e do governo do estado também é um fator que tem levado muitos agricultores a sair das suas áreas para procurar outras que têm documentação para acessar políticas públicas. Para ter uma DAP (Declaração de Aptidão ao Pronaf), por exemplo, e acessar essas políticas. Mas é impressionante a quantidade de agricultor que ainda depende do bolsa família e outras políticas sociais. Na região da baixada cuiabana, por exemplo, de cerrado, onde há populações tradicionais, a maioria das famílias depende dele e está pleiteando cisternas pela falta de água no período sem chuvas de maio a novembro. Isso não tinha, você começa a perceber que muitos córregos já secaram e não conseguem ter a água potável e para produção como antes.
Por que tanta dificuldade de acesso a DAP?
É uma dificuldade muito grande. Falta a documentação das terras, e diálogo entre o Instituto de Terras do Estado e o Incra para definir quem vai emitir esse documento. Um joga para o outro, os agricultores ficam sem acesso e consequentemente não têm acesso a DAP por não provarem que são agricultores. E são agricultores tradicionais, cujas famílias estão há mais de cem anos nessas áreas e não conseguem regularizar. O título dessas terras oferecido pelo Estado às vezes são falsos, tem vários donos e alguns fazendeiros se apropriam para expulsar as famílias dizendo que são donos dessas terras. Há um mês aconteceu isso em Livramento, os agricultores que moram ali há mais de cem anos estão ameaçados porque um fazendeiro entrou na justiça dizendo que tem o título da terra. Existem muitas ameaças.
E há menos de dois anos apareceu aqui na região o projeto de mineração, que é uma grande ameaça aos assentamentos, como no caso do Roseli Nunes e a região de Poconé e Livramento. Já teve garimpo de ouro e está sendo retomado, inclusive com mineradoras estrangeiras. Contaminam os rios, córregos e nascentes do pantanal com mercúrio, já tem provas de pessoas que estão doentes por conta disso nas águas. E agora fizeram umas pesquisas no assentamento e encontraram rochas com fosfato, que eles estão chamando de pré sal do agronegócio: vai ter adubo para a soja por muitos e muitos anos. Para isso, querem retirar 330 famílias de um assentamento como se não tivesse importância. O subsolo é da união e o solo é do Incra, onde foi feita a reforma agrária, mas as famílias são realocadas como se fossem coisas e mercadorias sem levar em consideração as suas histórias e importância. Na produção eles acessam o PAA, PNAE, abastecem escolas, entregam para mais de 700 famílias no município de Mirassol D’Oeste, mas isso não tem importância para eles. O prefeito não esconde esse apoio à mineradora, na visão deles é desenvolvimento e dinheiro que está chegando, arrecadação ao município, sem levar em consideração o que vai trazer de doença e a expulsão dessas famílias. Isso é um grande desafio. E o governo do estado eleito ano passado não tem manifestado nenhum tipo de apoio a agricultura familiar, no ponto de vista de alocar recursos financeiros do próprio PPA (Plano Plurianual) para que haja alguma coisa. Ele tem trabalhado com recursos do governo federal, e não tem preocupação de incluir a agricultura familiar nas políticas. Muito pelo contrário, dá total apoio ao agronegócio. Os senadores são do agronegócio, a maioria dos deputados também, e o governador é apoiado por eles.
Tem alguma luta específica de gênero aqui no Estado?
O que dá para perceber na maioria das experiências que estamos acompanhando com assistência técnica é que a maioria é protagonizada pelas mulheres. As agricultoras têm aceitado mais o trabalho, as mulheres têm permanecido quando os homens saem para vender a força de trabalho por conta de não conseguirem sobreviver com pouca renda em lugares que têm pouca água, por exemplo. São elas que têm participado na diretoria das associações, estão buscando capacitação para isso, com as políticas se interessam em trabalhar com o PAA, PNAE e fazer essa interlocução com as escolas e prefeituras. Mas por outro lado tem enfrentado mais conflitos com seus maridos, que não entendem o papel e direito delas de participar. Isso é um grande desafio para nós que trabalhamos com assistência técnica.