Cáceres (MT) – A maior parte do povo indígena Chiquitano habita o território boliviano, enquanto cerca de 20 mil deles estão espalhados pelo estado do Mato Grosso em solo brasileiro. A divisão feita pelos brancos no processo de colonização é a justificativa dos fazendeiros da região, que não reconhecem os indígenas como conterrâneos. Os governos, por sua vez, ficam num jogo de empurra sem tomar partido pelos nativos enquanto a bancada ruralista conserva seus interesses. É nesse cenário que o processo de regularização do território chiquitano está em tramitação há 20 anos.
Liderança da Aldeia Corizal, da terra indígena Portal do Encantado, localizada no município de Porto Esperidião, Alexandra Mentes Leite, nos conta as dificuldades enfrentadas pelo seu povo. Presidente da Associação Niorsch Haukina, que significa semente nativa, trabalha com o resgate das tradições através dos jovens. Para ela, só com a demarcação de suas terras a região será conservada e os direitos indígenas garantidos.
Por que se envolver com a agroecologia?
Há três anos participo da agroecologia que, apesar de ser um nome novo, é algo que a gente sempre praticou na aldeia. Nós ainda vivemos de alimentos tradicionais e sementes crioulas, naturais, é pouca coisa que vem de fora. A agroecologia trouxe para nós uma inovação: uma palavra nova com muitos conhecimentos. Passamos a aproveitar mais, por exemplo, produtos que achávamos que era só para uma coisa e nos cursos, conferências e encontros da agroecologia descobrimos outras mil utilidades que não dávamos importância.
Quais os principais desafios para os indígenas no Mato Grosso?
A nossa luta por territórios, porque muitos ainda não têm suas terras demarcadas. O nosso território, por exemplo, é reconhecido e homologado mas falta sair a demarcação e emplacamento. Ainda corremos um grande risco com essa PEC 215, que quer reduzir os territórios indígenas. Isso é um desafio, temos um grupo de chiquitanos lá em Brasília com vários povos que se revezam a cada 30 dias. Estão todos lá pela luta da demarcação de terras e nossos direitos, o respeito ao nosso rio. Tem povo que já está cheio de hidrelétrica nos seus rios, ainda não é o nosso caso mas não deixa de ser um problema nosso.
E qual é o principal problema enfrentado pelos chiquitanos?
A mineração, porque somos circulados por muitos projetos. Mas a maioria dos nossos parentes sofre com hidrelétricas no Mato Grosso, que afeta nossos rios. E a invasão dos madeireiros também, além da soja, algodão e pecuária que invadem nossas terras.
Fale mais sobre essa questão da disputa dos territórios.
A demarcação de terras, o respeito aos povos indígenas, é uma coisa que estão tirando de nós. As hidrelétricas fortemente para o lado do Xingu, perto da Amazônia, e no interior do estado a soja que está afetando. Na região de Campo Novo, dos Pareci, teve um levantamento em 2011 que mostrou um problema com o leite materno das mulheres e crianças nascendo com problemas. Fizemos oficinas na aldeia com levantamento de plantas medicinais, leite materno, parto normal, reforçando esses valores que estavam se perdendo. Então esse estudo mostra que o veneno estava afetando o leite materno das crianças na região de Lucas do Rio Verde, onde a soja é forte. Os Xavante Marãiwatsédé também têm problemas com a soja, algodão e milho.
Temos um grande impasse do nosso reconhecimento por estarmos na divisa, há uma controvérsia porque estamos no Mato Grosso e na Bolívia. Há resistência do governo em achar que nós chiquitanos do Portal do Encantado não somos brasileiros, então quando a gente entra com processo na luta pela demarcação de terras vem a resistência dos ruralistas de que não podemos ter direito ao território porque somos bolivianos. Mas é uma luta que não é minha, não foi uma divisão do meu povo e sim do governo. Meu avô fala: não fui eu quem falei para cá é do Brasil e para lá Bolívia. Porque 80% do povo chiquitano está na Bolívia, mas foi os brancos que dividiram o país.
Falta só a demarcação da terra de vocês? Em que estágio está a tramitação?
Nós estamos nessa luta desde 1995, o processo tem 20 anos. De 2004 para cá ela caminhou, mas em 2010 parou totalmente o processo. Tivemos todo apoio do governo federal, assistência, temos escola, posto de saúde, mas ainda falta a demarcação da nossa terra. Dizer que isso aqui é do povo chiquitano e está demarcado, e indenizar os posseiros no nosso território.
Se vocês têm todos esses serviços, explique por que é tão importante ter essa demarcação?
Porque é uma segurança nossa, a cada momento temos uma ameaça diferente. Se a gente perde, perdemos tudo que foi conquistado. Todos esses serviços não estão seguros, porque está cheio de posseiros e fazendeiros da pecuária no entorno. Só com isso conseguiremos preservar também, porque a nossa terra é muito rica em madeira e enquanto não demarca o povo vai tirando. Tem muita aroeira. Se nós não demarcamos nossa terra, quando ganharmos não vai ter mais nada daquela natureza e do rio. No ano passado o rio ameaçou secar, porque já está todo destruído na cabeceira. É uma coisa que se diz nossa, mas ao mesmo tempo está nas mãos do governo que ainda não nos entregou e demarcou dizendo que é área indígena para cuidarmos. É uma coisa ainda sem garantia, esse é nosso medo: ao conquistarmos ela não ter mais nada. Porque a vida do índio é morar numa reserva, nós preservarmos aquilo que é nosso. Não vivemos mais só da coleta, caça e pesca, já plantamos e somos pequenos agricultores. Porque não tem mais, a cada dia que passa vai perdendo cada vez mais sem a reserva. Essa é a grande preocupação do nosso povo.
Apesar de a agroecologia aparecer depois, o que caracteriza a cultura tradicional de vocês? Como conseguiram conservar suas tradições após a interferência dos técnicos brancos?
É uma luta bem grande, estamos trabalhando principalmente com os jovens. Fortalecer o que temos e não deixar perder mais, principalmente na agricultura. Tudo o que tínhamos dos nossos antepassados conseguimos revitalizar e está fortemente dentro da aldeia. A frutas do cerrado, por exemplo: ata, goiabinha, araçá, olho de boi, orvalheira, etc. Estamos fazendo mudas dessas plantas para multiplicá-las no cerrado, e hoje no nosso território é cerradão com mata fechada mais para o lado amazônico.
Há uma discussão de gênero dentro da aldeia, em relação ao papel da mulher na comunidade?
Fazemos muitos trabalhos com as mulheres, principalmente culturais. No nosso povo as mulheres são mais da agricultura, e o nosso povo é bem tranqüilo e não temos problemas de mal trato de crianças nem de mulheres. A maioria dos líderes no meu povo é mulheres, são elas que determinam em todas as instâncias de governo: na escola, na saúde, na comunidade e articulação. Tem articulação de homens também, mas é bem pouco.