Estamos correndo todo esse risco para quê?
Precisamos urgentemente acabar com essas falsas
garantias, com o adoçamento das amargas verdades.
A população precisa decidir se deseja continuar no caminho
atual, e só poderá fazê-lo quando estiver em plena posse
dos fatos. Nas palavras de Jean Rostand: a obrigação de
suportar nos dá o direito de saber.
Rachel Carson
(Trecho extraído do Dossiê Abrasco, 2015)
O Brasil está em alerta! Desde 2008, o País amarga a primeira colocação de maior consumidor de agrotóxicos do mundo. Alcançando a marca de 1 milhão de toneladas consumidas, o que equivale a uma média de 5,2 kg de veneno por brasileiro e brasileira ao ano, segundo Instituto Nacional de Câncer (Inca). Ao longo desse tempo, alertas vem sendo feitos com relação aos efeitos dos agrotóxicos na saúde de consumidores e consumidoras, trabalhadores e trabalhadoras, que manejam o veneno, principalmente por organizações e movimentos sociais, mas também institutos de pesquisa. Por isso, nesta quinta-feira (03), Dia Internacional de Luta Contra os Agrotóxicos, o Brasil não tem o que comemorar.
Em abril deste ano, o Inca lançou documento que ressalta os riscos dos agrotóxicos à saúde, em especial por sua relação com o desenvolvimento de câncer. O documento afirma que “dentre os efeitos associados à exposição crônica a ingredientes ativos de agrotóxicos podem ser citados, além do câncer, infertilidade, impotência, abortos, malformações fetais, neurotoxicidade, desregulação hormonal e efeitos sobre o sistema imunológico”.
Sessenta e quatro por cento dos alimentos no Brasil estão contaminados por agrotóxicos, segundo dados de 2013 da Agência de Vigilância Sanitária e publicados no Dossiê Abrasco – Um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). O Dossiê, fruto de pesquisas, alerta ainda que 34.147 notificações de intoxicação por agrotóxico foram registradas de 2007 a 2014, e que U$12 bilhões de dólares foi o faturamento da indústria de agrotóxicos no Brasil em 2014.
No entanto, setores do governo brasileiro teimam em ignorar os dados e seus reflexos na saúde da população e meio ambiente do País. A Ministra Kátia Abreu, do Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (Mapa), uma das maiores empresárias do agronegócio brasileiro, declarou em recente entrevista que existe uma “campanha muito organizada contra a utilização de agroquímicos no país”. A campanha a qual a ministra de refere é a pressão da sociedade civil organizada pelo lançamento do Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pronara), elaborado pela sociedade civil com o governo, finalizado há um ano, como parte da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Pnapo).
O Pronara está organizado em seis eixos – Produção; Uso e Conservação dos Recursos Naturais; Conhecimento; e Comercialização e Consumo – e seu lançamento foi adiado três vezes. A expectativa era que o Governo Federal o fizesse na 5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar, que aconteceu no começo de novembro, mas não aconteceu mais uma vez, e por pressão do Mapa. Ainda durante a Conferência de Segurança Alimentar os mais de 2 mil delegados e delegadas, que representam mais de 800 movimentos da sociedade, pautaram uma moção pela aprovação do Pronara e que já foi assinada por mais de 150 organizações e movimentos. “ O fato do Pronara não está em execução impacta o Brasil inteiro e é algo extremante danoso, considerando que o uso dos agrotóxicos gera um passivo ambiental enorme. Os solos ficam inférteis, as águas contaminadas, as pessoas prejudicadas pela ingestão dos alimentos contaminados e há perda da agrobiodiversidade e da vegetação nativa”, alerta Alexandre Henrique Pires, coordenador executivo da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) pelo estado de Pernambuco, e representante da ASA na Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).
Existe uma expectativa pelo lançamento do Pronara amanhã (03) durante a 15ª Conferência Nacional de Saúde que segue até esta sexta (04), em Brasília – DF. “O Manifesto assinado pelas organizações foi protocolado em nove ministérios, inclusive no Mapa, no entanto, achamos que vai ser bem difícil seu lançamento, frente à conjuntura. O Mapa, em conjunto com a bancada ruralista querem uma flexibilização da legislação e tem um discurso ideológico de tentar demonizar qualquer ação contra os agrotóxicos”, afirma Nivia Regina da Silva, da coordenação nacional da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida. A bancada ruralista também quer avançar o Projeto de Lei 3200/2015, que revoga a atual Lei de Agrotóxicos, e cria um marco regulatório que facilita o registro e estimula ainda mais o consumo de agrotóxicos. “Nesse Dia de Luta Contra os Agrotóxicos vamos colocar isso em pauta e fazer uma crítica direcionada contra essa PL”, reforça Nivia.
O que se percebe é um investimento massivo no agronegócio no Brasil e consequentemente ao uso de agrotóxicos no País, em detrimento da agricultura familiar e especialmente da produção agroecológica. O que a ministra Kátia Abreu chama de campanha preconceituosa é na verdade força política contra um modelo de desenvolvimento que visa o lucro em detrimento da saúde da população e do meio ambiente. Preconceito poderia ser considerada a diferença de investimentos do governo federal na agricultura familiar R$ 28,9 bilhões e no agronegócio R$ 187,7 bilhões, em 2015. E é o agronegócio quem mais se utiliza dos agrotóxicos em suas lavouras, sob o discurso de que o uso deles é que faz acelerar a produção de alimentos, numa analogia de que é um mal necessário para garantir a alimentação do mundo. No entanto, isso não é verdade.
E a sociedade está organizada, na busca de soluções contra a forte investida dos agrotóxicos. Em novembro, diversas organizações e movimentos sociais realizaram ato político Semiárido Vivo: Nenhum Direito a Menos, com participação de cerca de 20 mil pessoas em Petrolina (PE) e Juazeiro (BA) e lançaram documento de reivindicações para a região, reafirmando que não admitirão retrocesso na implementação de políticas para o Semiárido. Entre as reivindicações, o documento pontua a necessidade urgente da “proibição do uso dos agrotóxicos já banidos em outras partes do mundo”. “A gente não tem que comemorar nesse Dia de Luta Contra os Agrotóxicos porque no Semiárido brasileiro temos um contexto da fruticultura irrigada, sobretudo nos perímetros irrigados do Vale do São Francisco [PE] e da Chapada do Apodi [RN e CE] que lideram na região o uso de agrotóxicos. Não temos o que comemorar pela expansão do Matopiba [projeto nos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia] que se fortalece em uma grande área do agronegócio para produção de commodites com uso intensivo de agrotóxicos. Mas podemos comemorar a resistência da agricultura camponesa, da convivência com o Semiárido, da produção de base agroecológica”, pontua Alexandre.
Em 2011, a Organização das Nações Unidas (ONU) afirmou que a agroecologia pode duplicar a produção alimentar nos próximos dez anos e que “especialmente nas zonas mais desfavorecidas, os métodos agroecológicos são muito mais eficazes para estimular a produção alimentar do que os fertilizantes químicos”, afirmou o então relator para direito à alimentação da ONU, Olivier de Schutter.
A publicação da Abrasco também defende ainda a perspectiva da Agroecologia e a Reforma Agrária como caminhos para pôr fim ao uso de agrotóxicos no Brasil, e construir um país mais saudável e justo. “Trabalhei em campos de tomate por muitos anos. Quando foi com um certo tempo comecei a passar mal, ia pro campo de tomate e dava vontade de vomitar, dor nos ossos, dor de cabeça constante. Com um tempo não conseguia ir mais, chegava em casa e ficava cada dia pior. Aí teve um dia que chegou o Patac e o Coletivo [organizações da Paraíba] para fazer o Dia de Mobilização. Conquistei em 2012 uma cisterna-enxurrada. Depois da cisterna construída, eu nunca mais fui trabalhar no campo de tomate. Eu não quero mais agrotóxico. Planto com água da minha cisterna, tudo sem agrotóxico”, conta a agricultora Luciana Pereira, do Assentamento Dorcelina, em Cubati, Semiárido paraibano.
Modelo de desenvolvimento em cheque – Para João Pedro Stédile, da coordenação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), durante recente aula pública em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, “o capitalismo sequestrou essa função [a agricultura] e transformou-a em um mero mecanismo de apropriação de riqueza. Houve uma nova divisão internacional da produção agrícola. Um grupo de aproximadamente 50 empresas decidiu, por exemplo, que o Brasil deveria passar a produzir fundamentalmente soja, carne de gado, etanol e celulose. No Brasil, 85% das terras cultivadas, se destinam só a cinco culturas: soja, milho, pastagem, cana de açúcar e eucalipto. Cerca de 70 mil proprietários de terra fizeram uma aliança com essas empresas para implementar esse modelo”.
E diante desse contexto, o relatório do INCA ainda ressalta que “é importante destacar que a liberação do uso de sementes transgênicas no Brasil foi uma das responsáveis por colocar o país no primeiro lugar do ranking de consumo de agrotóxicos, uma vez que o cultivo dessas sementes geneticamente modificadas exige o uso de grandes quantidades destes produtos”.
A agricultora Luciana já disse não aos agrotóxicos e a essa lógica que envenena quem trabalha no campo, mas também quem se alimenta nas cidades, e tem feito de tudo para que outras pessoas de sua comunidade deixem de ser contaminadas e possam ter uma alimentação mais saudável, livre de veneno. “E tudo que eu posso fazer pra chamar outras pessoas pra esse meio eu faço, porque na minha região tem muitas pessoas que trabalham com campo de tomate, inclusive a minha cunhada está muito doente por conta do agrotóxico”.
*Com informações do Portal Sul 21.