maria_luciaA agroecologia é um lado invisível das religiões africanas no Brasil. Sempre associadas aos rituais e sua cultura, a produção dos seus alimentos e plantas medicinais nunca é lembrada. Isso se traduz nas dificuldades que seus integrantes têm para acessar políticas públicas, como nos conta Maria Lucia Goes Brito, Ekede do terreiro de nação de Ijexa, Ile Axé Ijexa orixá Olufon.

Representante da entidade Acbantu, que congrega vários terreiros na estado da Bahia, ela nos conta a importância da agricultura urbana para a manutenção dos povos de terreiro. A impossibilidade de tirar nos grandes centros urbanos a Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP), documento necessário para acessar qualquer política pública, é sua principal preocupação. Ela foi entrevistada durante o I Encontro Nacional de Agricultura Urbana (ENAU), realizado na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) em outubro.

Quem você está representando aqui no encontro?

Estou representando a Akibanto, uma entidade banto que agrega vários terreiros. Temos tido uma luta muito grande em respeito à agroeocologia por conta dos terreiros acreditarem e respeitarem a mãe terra e a água, também sabendo que se nós não cuidarmos acabam. Temos uma luta muito grande para evitar que as próprias pessoas que adentram ao terreiro se alimentem de produtos agroecológicos. Mas as instituições governamentais têm um preconceito muito grande com os povos de terreiro, então mesmo que a gente plante não conseguimos a DAP para vender nem ao PAA (Programa de Aquisição de Alimentos) nem na feira. Então esses produtos são usados dentro da comunidade e doados, porque não conseguimos vender. Isso seria a sustentabilidade dos povos de terreiro, mas infelizmente o governo tem faltado com esse trabalho porque não temos políticas públicas que contemplem a agricultura urbana. Temos isso na zona rural, onde existem os quilombolas e alguns povos de terreiro, mas na zona urbana dificilmente se consegue. Mesmo na zona rural o governo nunca nos trouxe benefício algum, inclusive nos falta assistência técnica que seria o ideal para ver a questão do solo, o que falta e precisa. Essa colaboração que não existe seria ideal, até porque o governo não precisaria emitir outras políticas públicas para nós se nos desse a condição de sobreviver dentro da agroecologia.

Qual a importância de desenvolver um trabalho com plantas medicinais?

Por excelência nós utilizamos mais as plantas medicinais, porque acreditamos nas folhas que rezam, que curam com chá, com banhos e outros trabalhos dentro dos terreiros. É muito importante porque uma folha que cai é muito sagrada para nós, para entrarmos numa mata e tirá-la para usá-la temos que pedir licença: não temos o direito de chegar na planta e destruí-la.

Quando pensamos na agroecologia vem logo a ideia da alimentação, mas como entra a cultura nesse processo?

É preciso lembrar que povos de terreiro são essencialmente culturais no fazer, vestir, comer, falar, dançar, etc. E a nossa cultura sobrevém dos nossos ancestrais, como plantar para comer o aipim e a batata doce, o milho. Então aprendemos a plantar, colher e comer.

Existe alguma organização nacional dos povos de terreiro?

Não, existe essa entidade na Bahia chamada Acbantu que nos dá apoio porque, inclusive, consegui a DAP jurídica e o Selo de Identificação da Participação da Agricultura Familiar (Sipaf). Mas mesmo assim não tivemos nenhum acesso a políticas, principalmente na zona urbana. Temos produção suficiente, na Bahia são diversos terreiros, então tem condição de se vender ao Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Bastaria o governo dar essa DAP para a zona urbana, porque eles já dão para zona rural.

Então os terreiros que são vistos como centros religiosos também têm essa característica da agricultura?

A religião faz parte do nosso viver: vivemos, dormimos e acordamos com os nossos orixás, mas o nosso fazer e viver diário é ancestral. Temos a tradição de plantar para colher e comer. Nosso trabalho é em Itabuna (BA), mas estamos associados a essa entidade que fica em Salvador. Temos também plantas ornamentais para nosso terreno ficar belo, e não temos o direito de vender nas zonas urbanas. Não podemos colocar uma barraca numa feira nem comercializar institucionalmente. Além de tudo isso, sofremos muito preconceito institucional com relação às políticas que advém por causa da intolerância religiosa.