Por Fase Pressão de agricultores e agricultoras familiares impugnou pregão presencial em Mutuípe, na Bahia, que feria princípios do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Valor de apenas uma compra de produtos, feita pela prefeitura junto a um único agricultor, era mais que o dobro do permitido por lei ao ano
Para a agricultora familiar Joélia Alves, de 27 anos, a comercialização de seus produtos para escolas de Mutuípe, via Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), foi uma oportunidade de melhorar sua renda.“A gente tem o trabalho de produzir e os atravessadores compram. Na verdade, eles não compram. A gente quase que dá os alimentos a eles. Aí, com o programa, a gente já consegue vender por um preço mais justo”, diferencia. Porém, ela destaca que o acesso ao PNAE em sua região é restrito e que as famílias agricultoras pressionam pela ampliação do acesso ao programa. No município baiano, que possui cerca de 20 mil habitantes, um dos principais impedimentos para tal está no descumprimento de regras estabelecidas na Lei 11.947/2009, que diz que “no mínimo 30% dos recursos devem ser utilizados para aquisição de produtos da agricultura familiar”. No lugar de chamadas públicas, com prévia e ampla divulgação, e compras diretas da agricultura familiar, com dispensa de licitação, a prefeitura tem realizado “pregões presenciais”, espécie de leilões às avessas que têm provocado distorções dos princípios da política pública.
Firmino Alves- BA- Brasil- 22/07/2015- O plantio, o cultivo e a colheita de alimentos pelos estudantes do Centro Educacional Monteiro Lobato, da rede estadual de ensino do município de Firmino Alves, no sul do estado, são mais um exemplo da parceria entre sociedade e escola, conforme propõe o programa Educar para Transformar ? um Pacto pela Educação. A partir do envolvimento de profissionais voluntários e da comunidade, o colégio ganhou uma horta que produz alface, tomate, coentro e outras hortaliças. Os alimentos são utilizados na merenda escolar e os alunos adquirem novos conhecimentos por meio da atividade que relaciona disciplinas, como Matemática e Biologia, com educação ambiental. Foto: Acervo Monteiro Lobato
Pelo menos 30% dos recursos devem ser utilizados para compra de alimentos da agricultura familiar. (Imagem: Arquivo Monteiro Lobato/Fotos Públicas)
Recentemente, o programa da FASE na Bahia e o Sindicato dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (Sintraf Mutuípe) conseguiram impugnar um item de Pregão Presencial no valor de R$ 40.324,80. Esse valor, referente a uma compra feita junto a um único agricultor, é mais do que o dobro do permitido anualmente pelo PNAE, que é de R$ 20 mil por agricultor (a) ou empreendedor (a) familiar rural. Segundo Nadilton Andrade, educador da FASE na região, após esse episódio, ocorrido em abril, ainda não foram feitas Chamadas Públicas, mas a impugnação deu esperança para quem luta pela ampliação do PNAE. Nadilton explica ainda que a lógica empregada pela prefeitura de Mutuípe também está presente em outros municípios do Vale do Jiquiriçá e do Baixo Sul, regiões baianas onde atua a FASE pelo “Fortalecimento da capacidade de geração de renda e da integração socioeconômica de agricultores familiares”, com ações apoiadas pela União Europeia.
“Fazer uma [compra] grande uma vez só não leva em consideração a sazonalidade dos produtos, quais alimentos e em que épocas eles são produzidos. Não se respeita dessa maneira a diversidade [produtiva] do núcleo familiar, suas peculiaridades. Os pregões estabelecem, por vezes, quantidades que os agricultores não têm capacidade de entregar”, explica. Já na Chamada Pública, prevista na lei do PNAE, a compra dos produtos pode ser feita com dispensa de licitação, e organizações de agricultores como associações, uma cooperativa e até mesmo grupos informais podem se preparar para elaborar seus projetos de venda e concorrerem em melhores condições.
Valores da agricultura familiar
Essa distorção do PNAE, programa que data dos anos 1950 e que foi renovado em 2009, através da Lei 11.947, gera contradições como conflitos entre as próprias famílias agricultoras, que são obrigadas a disputarem individualmente o Pregão Presencial. Joélia, que é presidenta da Associação de Moradores da Região do Rio do Braço, conta: “Os agricultores brigam entre eles mesmos. Vamos supor: eu quero vender meu produto, mas tem outro agricultor, de outra comunidade, que quer vender também. Aí ele, para não perder, vai querer colocar o valor mais baixo. Acaba que eu, que não quero dar de graça o alimento, não vendo. E acaba que tem vez que, por ser muita quantidade, ele não tem condição de entregar. Já aconteceu isso”.
O critério de menor preço, o que em um primeiro momento pode parecer justo, não corresponde aos objetivos da política pública. Na Chamada Pública se leva em consideração os preços efetivamente praticados no mercado local e os agricultores podem se organizar coletivamente, somando o que cada família produz e se dispõe a comercializar. Para exemplificar, Joélia conta o que aconteceu com um grupo de mulheres que produz chocolate artesanal. “É um chocolate caseiro e muito bom. Um quilo desse chocolate custa R$ 20, porque foi feito um estudo de viabilidade [econômica]. A prefeitura diz que é muito caro. Que tem que comprar o da Nestlé mesmo. Essas mulheres trabalham dia e noite mexendo tacho de amêndoas de cacau e não são valorizadas. Por trás desse chocolate tem aquelas mulheres gerando renda, melhorando sua autoestima por meio de seu trabalho. Mas não, não olham isso não. Só querem saber do menor preço”, critica.
Mais que os valores financeiros, que devem ser reconhecidos, Nadilton ressalta que as atividades da FASE chamam atenção para outros valores da agricultura familiar, como por exemplo a qualidade e a diversidade dos alimentos. “Quando chegamos numa comunidade, o primeiro passo é tentar mostrar que a monocultura não é uma atividade sustentável, ela não garante uma sustentabilidade para família nem para a região. Então, a gente incentiva a agroecologia, a diversificação das culturas nas propriedades”, destaca. Com isso, os quintais produtivos mais próximos às residências, além de levarem comida para as mesas das famílias, fortalecem a economia e a cultura locais. O combate ao uso de agrotóxicos também é feito em defesa da saúde das pessoas e do meio ambiente. Priorizar a compra direta da agricultura familiar significa mais recursos circulando no próprio município.
Terra
Mas, tanto Nadilton como Joélia alertam para um problema de fundo na região: falta terras para a agricultura familiar. “Os agricultores familiares dos municípios baianos do Baixo Sul e do Vale do Jiquiriça têm pouca terra para trabalhar. Existem comunidades onde as propriedades não passam de uma ou duas tarefas. Isso não chega a um hectare”, afirma Nadilton. Joélia completa dizendo que as famílias vão crescendo e novas casas vão substituindo as lavouras. “Meus avós só tiveram meu pai. E eu tenho só mais duas irmãs. Por isso, conseguimos ficar com um pedaço de terra um pouco maior. Mas aqui tem família que tem duas tarefas de terra e oito filhos. Aí não tem espaço para ninguém”, conta.