Lábrea (AM) – A aldeia Ashaninka, na fronteira do Acre com o Peru, é um exemplo de resistência indígena por meio do resgate de sua cultura original. Território de conflitos com madeireiros e traficantes, inclusive alvo de perseguição da Polícia Federal, a partir da luta dos povos tradicionais conquistou sua autonomia. Quem conta essa história é Benki Piyanco, liderança que viaja o Brasil e outros países para passar essa mensagem. Ganhador de prêmios de direitos humanos da Presidência da República, ONU e na Alemanha, ensina o que seus ancestrais acumularam em milênios no convívio harmônico com a floresta. Benki estava no Mutirão Agroflorestal e Troca de Sementes na TI Catitu, realizado pela Operação Amazônia Nativa (OPAN), ONG que luta pelos direitos indígenas, numa comunidade da etnia Apurinã próxima a Lábrea (AM).
“Vimos a necessidade de toda nossa fragilidade quando os patrões massacraram, destruíram e escravizaram nosso povo. Passando por esse massacre, quando nos usavam para explorar a madeira e a borracha vimos que estávamos matando muito a natureza e os animais. Isso foi decisivo na década de 80 com a empresa Marmude Cameli, relacionada ao ex governador, para procurarmos a Funai e organizarmos nosso povo para mudar a história”, contou.
Seu avô era um ancião da floresta, um grande espiritista que falava com os animais, e sua mãe a primeira branca escolhida para se casar com um Ashaninka e ensinar aos indígenas a falar a língua dos brancos. Foi a partir dela, em 1986, que começaram a lutar por suas terras. Chamaram antropólogos e dialogaram com o poder público, o que resultou em ameaças de morte por parte dos interessados pela região. Realizavam grandes reuniões na comunidade para conscientização do povo, época em que seu irmão teve de morar em São Paulo por cinco anos para não ser assassinado ou preso.
“Quando voltou, disse: vi o mundo se acabando, a água e tudo com lixo. Precisamos lutar para proteger nossas terras e águas. Trouxe um saco de semente de cupuaçu, acerola, açaí, etc. Já eu só estudei um mês numa sala de aula, tomei uma palmatória e nunca mais voltei. Meu avô dizia que nenhum sábio ensina com a agressão. Eu era um mensageiro que falava com as 70 famílias de nossa aldeia, os pajés e aprendia com eles. Falava com os caçadores brancos invasores, pescadores, e com esta luta aprendi a conhecer as ervas medicinais e curas. Comecei a trabalhar com as crianças, acabamos com o gado da família e passamos a plantar. Nossa vida é a água, animais, todas as frutas, o exemplo começa dentro da nossa casa”, disse.
Após pesquisar durante 8 anos o conhecimento de outros povos e seus ancestrais construíram um enorme acervo de sementes crioulas, e aquelas crianças formadas à época se tornaram grandes lideranças na recuperação da floresta. Quase 2 mil quilos de sementes foi, aos poucos, se tornando madeira de lei e frutos nos terrenos. Fizeram um consórcio diversificado com frutíferas exóticas e nativas, se tornando um grande sistema de subsistência: arroz, variedades de milho crioulo, macaxeira, feijão, entre outros alimentos saudáveis.
“A gente abastecia a cidade, mas ficava escravo de nós mesmos. É preciso primeiro comer bem e depois o resto para quem está precisando, e criamos a associação e a cooperativa. Esses 5 anos de planejamento foi o marco da nossa comunidade, começamos a nos integrar a esse mundo da ciência, da comunicação, infraestrutura, e passamos a não comprar nada de fora. Mudamos a merenda escolar da nossa comunidade (inhame, arroz, batata, frutas, etc), queremos comer aquilo que merecemos e não enlatados de fora”, explicou o também curandeiro.
Passaram a falar com as autoridades quando uma liderança foi cercada para ser presa, e toda a comunidade impediu. Mudaram de área em 1995 e em 2002 conquistaram a demarcação do território, expulsando os madeireiros. Após cinco anos de planejamento já pensam nos planos para 2050, de modo a tirar algumas coisas e priorizar outras. A televisão para ver novela ou filme de violência, por exemplo, foi proibida, inclusive por causa do custo do combustível da energia, assim como músicas de fora para valorizar a cultura local com seus instrumentos.
“Tiramos muitas coisas com consciência e sem agressão, colocando ao grupo a responsabilidade de uma liderança. Em 15 anos conseguimos reflorestar mais de 15% da nossa terra, e hoje chegamos a quase 50 toneladas de fruta ao ano. Vimos formas de trabalhar, levando tudo para a escola, recuperando os lagos, rios, animais, criando áreas de refúgio para preservar. Tudo isso porque a comunidade acordou em viver bem, ter força e chegar na frente do prefeito e governador para exigir o que a gente quer”, observou.
Com o destaque de sua liderança, Benk se tornou secretário no município de Marechal Thaumaturgo, mas a corrupção na máquina o decepcionou e voltou para comunidade. Fez então um projeto com 80 jovens, buscando o respeito da prática de um povo que muitas vezes é ignorada pela academia e pela ciência. Assim como os animais espalham sementes pelas florestas, colocaram milhares de mudas para reflorestamento.
“Os prefeitos e governos não ligam para o que fazemos, mas não ligamos porque mostramos a capacidade da juventude sem envolvê-la com a droga e a cachaça que tem na rua. Tentaram me matar, já fui ameaçado por várias pessoas, mas continuamos na luta. A importância da cultura de um povo é muito rica, cada povo tem sua maneira de viver. Nossos mitos, cantos, histórias, roupas, comidas, são muito importantes. Os madeireiros mataram quatro lideranças do nosso povo na parte do Peru, e agora faltam lideranças. Mas passamos esse conhecimento para todos, por isso se me matarem tem continuidade e a esperança não se acaba” disse.
O Ashaninka buscou apoio na ONU, Itamaraty, presidência, dentre outros órgãos, para tirar os traficantes da região. Continua lutando por seu povo, mesmo com ameaças. Hoje eles têm cerca de 15 mil quelônios (tartarugas) nos lagos para produção e alimentação. Fizeram um Centro de Saberes da Floresta para trabalhar com pessoas de dentro e fora da comunidade, e estão construindo sua agroindústria para produzir suas frutas. Aproximadamente 5 mil pessoas estão envolvidas na região do Juruá com o reflorestamento da beira do Rio, mas não é fácil porque as pessoas só pensam na economia. Plantaram 80 mil mudas em três meses, mas alagou e perderam tudo em três dias. Encararam isso como um desafio, e jogaram de volta milhares de sementes: em seis meses recuperaram suas mudas.
“Foi um trabalho intenso, organizando e planejando para produzir dentro de um sistema consorciado com a diversidade e dando equilíbrio econômico e sustentável à comunidade. Não precisamos de igreja, padre, nada para ser feliz. Precisamos de consciência. Quem é filho de Deus? Todos nós, podemos pregar dentro de um território e orientar nosso povo. Deus é sentimento, universo, não é estátua. Nossos povos viveram milênios com grandes sábios em centros de meditações nas florestas, e esses atropelos não permitem mais trazendo muita destruição e esquecendo nossas origens. Não discrimino nada, mas também não gosto que discriminem nossos povos. É preciso cuidar para preservar nossas importantes raízes”, concluiu.