No dia 16 de outubro, entre o primeiro e o segundo turno das eleições, para retomar as discussões em torno da reforma agrária no Brasil, foi realizado o debate “Questão agrária e tendências do agronegócio”, no centro do Rio de Janeiro. A atividade foi promovida pelo Núcleo de Pesquisa, Documentação e Referência sobre Movimentos Sociais e Políticas Públicas no Campo do Curso de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
Gerson Teixeira, presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA) afirma que o tema da reforma agrária estava mais em pauta antes do golpe militar de 1964. Atualmente, o debate sobre o tema é um processo de resistência intelectual devido às circunstâncias políticas. A academia mantém o debate num cenário cheio de contradições, na medida em que o Partido dos Trabalhadores (PT) assumiu o poder com o compromisso com essa agenda, mas promoveu o avanço do agronegócio, pontuou.
“Estamos realizando seminários resgatando o tema, porque é uma questão estratégica do futuro do país. O programa do Lula para a questão agrária foi produto de uma maquiagem da construção dos movimentos sociais. Na reunião da direção do partido, Lula deu um depoimento emocionado dizendo que o que mais incomodava era a recomendação do Duda Mendonça para reforma agrária pacífica. Prevaleceu a visão pragmática: um governo de coalizão, a economia pactuada com o agronegócio e a reforma agrária foi deixada para o futuro”, criticou Teixeira.
No início do governo chegaram a tentar o III Plano de Reforma Agrária, mas foi bloqueado pelo então ministro da reforma agrária, complementou. A opção do partido foi investir numa política inclusiva muito forte dos setores camponeses historicamente excluídos, ao incorporá-los no crédito e outras políticas, mas sem alterar o modelo. Para ele, foi implantada uma modernização conservadora graças ao pragmatismo da economia do mundo das commodities refém de uma correlação de forças no Congresso favorável aos ruralistas.
“Mas piorou com a Dilma. Os movimentos entregaram na semana passada o resultado do plebiscito da reforma política e, ao Stedile falar de reforma agrária, ela reagiu dizendo que de fato tem que ser retomada. Dilma tem ouvido os movimentos, mas não é fácil. Tenho defendido não dar orçamento para o INCRA sem mudar a legislação, porque não tem como você fortalecer o programa de reforma agrária. A segunda maior despesa do INCRA é de juros compensatórios, que é uma área decretada de direito social e o dono vai ao judiciário contestar o preço. Se essas armadilhas não forem superadas, institucionalmente é impossível e fica uma reforma agrária de mercado”, afirmou.
Após o golpe que instalou uma ditadura militar em meados do século passado, as forças que tomam o poder colocam um projeto de modernização técnica da agricultura brasileira sem reforma social e da estrutura agrária, explica Guilherme Delgado, ex-pesquisador do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e professor visitante em algumas universidades. Delgado critica o silêncio sobre o tema agrário, apesar de sua relevância. Embora tenha sido criado à época o Estatuto da Terra, que introduz na atual constituição o conceito de função social da propriedade da terra, distinto da Lei de Terras de 1850, o arranjo de poder dos anos 90 vincula as cadeias de produção às grandes propriedades. Nesse contexto o espaço urbano no Brasil, no qual vivem 83% da população em 0,3% do território nacional, e o meio rural restante estão sujeitos a esse regime de mercadoria que exclui as comunidades tradicionais, complementou.
“O Estado retoma a política de crédito como carro chefe e a política de desregulação, a não aplicação do regime fundiário da constituição de 88. Isso constitui o pacto de poder inaugurado no FHC 2 e seguido com toda a violência nos governos do PT. Foi a mudança conceitual formal do direito de propriedade, e a recuperação do princípio da terra mercantil pela economia do agronegócio. Os recursos naturais são apropriados pelo titulo de propriedade, cria um problema que sociedades desenvolvidas já resolveram de várias formas. A questão agrária não é superada porque é negada”, critica Delgado.
Para ele, na questão agrária existe seca, preço, transportes, dentre outras coisas, mas no cerne do tema está o direito de propriedade, posse e uso da terra. O pesquisador lembrou de guerras nacionais envolvendo milhares de pessoas no século passado, resgatando Canudos e Contestado para exemplificar esses conflitos. Reforma agrária com um grau de organização política maior só vai aparecer nos anos 60 no governo Goulart, complementou.
“Há uma contradição muito forte entre o regime fundiário da ordem jurídica e o pacto de poder político que governa o estado brasileiro principalmente do ano 2000 para cá. O governo FHC 2 lança as bases da economia política do agronegócio, pacto que envolve as cadeias agroindustriais principais e um conjunto de setores passa a ter protagonismo no cenário exterior. Caminho de forte reprimarização de suas exportações, e a dependência externa passa para a potencialização desses setores no Brasil. Projeto de economia com eixo de protagonismo do próprio Estado, arranjo de poder das cadeias de produção com as grandes propriedades fundiárias”, afirmou.
Esse pacto de poder é seguido com toda a violência nos governos do PT, com o Estado cumprindo papel de forte alavancagem econômica e desregulação. Além disso, o agronegócio controla as mídias, o pensamento acadêmico, o poder econômico. A especialização no mercado com produtos homogêneos e superexplorados em busca de vantagens comparativas desses recursos é o que prevalece, complementa.
“Mas quando entram os custos sociais, ambientais e até institucionais nos perguntamos para onde vai esta sociedade industrial e urbana em pleno século XXI? Essa superexploração é uma parte do problema e não solução, porque especializa sua sociedade em bens da natureza que são limitados. A malignidade está na especialização e na dependência da questão do regime de propriedade, que é contra a igualdade. Renda e riqueza concentrada nas mãos dos proprietários, tributações baixas de longa data e extremo ativo dos créditos subvencionados”, observou.
A proposta do pesquisador é pegar o lucro extraordinário dessas commodities e revertê-lo num sistema de financiamento público para reestruturação do nosso parque industrial, conforme defendia o economista Celso Furtado.
“Falta um projeto de longo prazo para que esse sistema seja reprodutivo e sanável nas contradições inerentes da sua própria forma de explorar. O regime capitalista viola o regime de propriedade, comete todos os crimes ambientais, de trabalho escravo e intoxicação da natureza e fica por isso mesmo. Sem afetar o direito de propriedade dele, não tem condições de reverter”, encerrou.