Após a mesa de abertura do Encontro Interconselhos e de Comissões no Ano Internacional da Agricultura Familiar Camponesa e Indígena, com a participação de dois ministros, realizada nesta manhã (06) em Brasília, as discussões foram abertas à sociedade civil. O acesso a terra, o reconhecimento das populações extrativistas, quilombolas e indígena, além de uma adequação das políticas públicas para a agricultura familiar às necessidades territoriais, foram algumas das reivindicações apontadas pelos representantes das organizações sociais.
O mês de agosto é de luta das mulheres por conta do assassinato de Margarida Alves, militante histórica no meio rural, lembrou Maria Verônica de Santana, do Movimento da Mulher Trabalhadora Rural (MMTR), antes de falar de questões de gênero. Ela falou sobre a importância do entendimento de como historicamente as mulheres foram perdendo seu protagonismo na produção agrícola e na sociedade em geral, e o desafio de tirá-las do espaço privado para o público resignificando a divisão do trabalho.
“Dizem que as mulheres descobriram a agricultura. De lá para cá mudou muita coisa, o modelo capitalista mudou cada vez mais a divisão do trabalho e o espaço das mulheres foi sendo reduzido. Naturalizamos essas questões, e mesmo quando as mulheres ocupam o espaço público ainda conservam grande parte desse trabalho doméstico. Isso gerou dependência econômica, violência, pouca participação social e política, principalmente nos espaços de poder. Por isso estamos sempre em luta, e chegamos em 2014 no ENA (Encontro Nacional de Agroecologia) com o lema sem feminismo não há agroecologia”, afirma.
A institucionalidade da segurança alimentar e nutricional no Brasil, com um marco regulatório no país, uma política e um sistema nacional, conselhos, além da emenda constitucional reconhecendo o direito humano à alimentação, visibilizam uma séria de questões importantes, apontou Silvia Rigon, do Consea-PR. O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e a Política Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) são exemplos extremamente relevantes, observou. O desafio de implementar o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo) vem nesse contexto, acrescentou.
“Precisamos fazer com que alimentos produzidos por essa categoria cheguem aos que mais necessitam de uma alimentação de qualidade. Temos o desafio de consolidar esse sistema, é uma questão estratégica para o desenvolvimento nacional. Garantir o acesso a água, terra, territórios, sementes, bens fundamentais para que essas populações possam garantir sua reprodução e seu trabalho. Isso tem sido sistematicamente negado por nossa estrutura social e econômica. É muito importante para o Brasil defender esses princípios em contraposição a esse modelo internacional que muitas vezes se sobrepõe às questões locais”, destacou.
Para isso é preciso atentar que a agricultura não é um todo homogêneo, como muitos acadêmicos e gestores consideram, assinalou Paulo Petersen, vice presidente da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA). A agricultura familiar é portadora de qualidades específicas, que precisam ser desenvolvidas para que se realizem efetivamente seus efeitos positivos à sociedade e combatam as atuais dramáticas crises humanitárias. Embora tenha muitas críticas, ele reconhece avanços com a crescente diversificação produtiva e a criação da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO).
“A agricultura familiar é muito relevante para a sociedade contemporânea e será determinante no futuro. Mas temos que discutir em que condições ela tem possibilidade de desempenhar suas qualidades. Uma esteira rolante, dos mercados, está a jogando para fora de suas terras desde a primeira geração de políticas da agricultura familiar em 1995. Temos que ter a coragem política de analisar o que está acontecendo depois de 20 anos. Não precisamos esperar o próximo censo agropecuário para perceber que existe uma concentração de riqueza e terra, um crescente endividamento, degradação ambiental, êxodo da juventude, etc. Condições macroestruturais que enfraquecem a agricultura familiar, apesar das crescentes alocações de recursos públicos. Não é possível conviver essas duas trajetórias. Surge o Brasil Agroecológico como conquista, mas nunca deixamos de expressar nossas críticas na medida em que não entendemos a agroecologia como um segmento econômico da agricultura e sim um enfoque para o desenvolvimento rural”, criticou Petersen.
A aproximação das populações indígenas aos movimentos agroecológicos e da agricultura familiar tem sido estimulada por várias lideranças, daí a importância da participação de Telma Marques, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). Ela elogiou a abertura do Estado ao diálogo com os indígenas durante o governo Lula, mas ponderou que ficou muito abaixo das expectativas dos movimentos. Destacou ainda a forma de lidar com a natureza pelos povos tradicionais na conservação da biodiversidade e soberania alimentar.
“É preciso implementar políticas públicas adequadas aos povos indígenas, garantir o acesso a terra e aos programas institucionais como PNAE, PAA e ATER de forma favorável aos nossos povos e conhecimentos tradicionais. Não temos como garantir custeios nem documentações, então é preciso fomento à estrutura, acesso ao crédito e financiamento que esbarra numa burocracia muito grande. Repensar formas e critérios de acesso, como a DAP (Declaração de Aptidão ao Pronaf). Além do reconhecimento dos sistemas tradicionais agrícolas, políticas que levem em conta condições agroecológicas e características ambientais territoriais”, alertou.
O Encontro só foi possível graças uma modificação na agenda mundial, que antes discutia a redução do estado, observou Laudemir Muller, Secretário Executivo do Desenvolvimento Agrário. Hoje o Brasil está ocupando espaço na FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura), reproduzindo uma discussão internacional e precisa dar o exemplo para fora do país, disse o gestor. Para ele, temos que cada vez mais afirmar a agricultura familiar como projeto de país que queremos.
“Temos que estar convencidos e convencer a sociedade e o Congresso que não vamos avançar se não tivermos uma agricultura familiar forte. Apresentar propostas: a reforma agrária, acesso a terra e recursos, como tema central. Nos últimos 36 meses aumentou 70% o preço da terra, e o desafio de melhoramento dos assentamentos, hoje com 945 mil famílias. Não dá para ter assentamento sem acesso a estrada, assistência técnica, luz para todos, etc. E a agroecologia é central como indicação de modelo que queremos para agricultura familiar e reforma agrária, orientação para os instrumentos de políticas públicas”, destacou.
Na plenária foi destacada a importância dos extrativistas, sobretudo na região Amazônica, de modo a reconhecer suas atividades diretamente ligadas à segurança alimentar. A expectativa da Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (CNAPO) em relação a uma posição soberana do estado brasileiro sobre o Plano Nacional de Redução de Agrotóxicos no Brasil também foi apontado. A visibilidade dos negros e quilombolas também foi considerada, assim como uma resposta política mais clara à ofensiva ao Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Os movimentos indígenas observaram que ocorreram retrocessos no governo Dilma, e não têm respostas sobre a demarcação de terras enquanto o agronegócio continua avançando nas negociações com o governo e não nomeou a atual presidente da Funai, que está há mais de um ano como interina.
(*) Fotos: Ascom Consea.