A Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) vem nos últimos anos se aproximando das organizações e etnias indígenas, reforçando a agroecologia como prática e costume das comunidades tradicionais. No III Encontro Nacional de Agroecologia (ENA), realizado em maio em Juazeiro (BA), houve uma participação expressiva das populações indígenas. As quinze etnias lá presentes aprovaram uma moção na plenária final com suas reivindicações, afirmando que “a Agroecologia deve ser princípio, objetivo e meta do desenvolvimento sustentável a ser promovido por órgãos governamentais e não governamentais e pelas próprias populações que detêm o uso exclusivo da posse plena das Terras Indígenas”, relembrando ainda que “os territórios indígenas são, imemorialmente, territórios agroecológicos”. No VIII Congresso Brasileiro de Agroecologia (CBA), realizado ano passado em Porto Alegre, os indígenas também destacaram a necessidade de maior aproximação com os movimentos agroecológicos.
Recentemente, em parceria com a Embrapa, Funai, União das Aldeias Krahô – Kapéy e Rede Ipantuw, a ANA publicou, entre os volumes da série “Sementes Locais: experiências agroecológicas de conservação e uso”, um caderno sobre a experiência do povo Krahô de resgate e conservação de sementes tradicionais.
Neste contexto, abrimos espaço para a divulgação de uma série de artigos sobre a questão indígena de Fernando Schiavini, indigenista da Funai e autor dos livros “De Longe, Toda Serra é Azul – Histórias de Um Indigenista” (2010) e “Diário de Campo 2008/2009” (2009). Os textos são publicados originalmente na página Manifestos Indigenistas.
OS GRANDES DESAFIOS DO INDIGENISMO
Parte II – Infraestrutura Comunitária em Terras Indígenas
Por Fernando Schiavini,
Uma das grandes diferenças culturais evidenciadas, entre os povos indígenas e a sociedade dominante, é a questão da infraestrutura comunitária, aqui entendido, principalmente, como habitações e vias de acesso. Sendo essencialmente móveis, os povos indígenas desenvolveram estruturas de moradia e “urbanizações” de suas aldeias de forma provisória, contando com a os materiais disponíveis na natureza: madeira, palhas, barro, embiras, etc. Na questão das vias de acesso, como é sabido, caminhavam a pé, por trilhas abertas na vegetação ou pelos rios, em pequenas embarcações.
Com o contato prolongado e definitivo com a sociedade envolvente e o conseqüente confinamento em territórios imutáveis, as comunidades indígenas obrigam-se a desenvolver processos de adaptação ao sistema de vida sedentário. Esse processo, entretanto, não vem sendo acompanhado pelas devidas adaptações de moradias, vias de acesso, coletas de lixo e outras estruturas disponíveis em centros urbanos.
Com relação às moradias, elas continuam, de modo geral, sendo construídas como no passado, utilizando-se materiais disponíveis na natureza. Acontece que, com a fixação definitiva das aldeias, os materiais começam a escassear, tornando cada vez mais difícil a reposição dos mesmos. A cobertura de uma residência indígena tradicional, via de regra, precisa ser reformada a cada cinco anos, variando dois ou três anos a mais ou a menos, dependendo dos materiais e das técnicas utilizados. As madeiras que compõem a estrutura da casa duram, no máximo, dez anos, diminuindo sempre este período, à medida que prolonga o tempo da fixação da aldeia. As madeiras “de lei”, apropriadas para a fixação de esteios, se extinguem no entorno do núcleo “urbano” do grupo, obrigando as famílias a lançarem mão de madeiras menos resistentes. Dependendo da extensão do território explorado pela aldeia, do tipo de vegetação e da sua forma de exploração, os materiais apropriados para a construção de residências podem se extinguir definitivamente.
O resultado desta conjunção de fatores são residências frágeis, úmidas, frias e, de modo geral, escuras em seus interiores, considerando que, tradicionalmente, não possuem sistemas de entradas de claridade e ventilação. Tudo isso facilita a proliferação de doenças, cujos agentes transmissores encontram campo fértil para se instalarem e se multiplicarem.
Atualmente muitas comunidades indígenas são assediadas por políticos e empresários, que lhes oferecem a construção de moradias constantes de programas governamentais, nos mesmos modelos oferecidos à massa da população de baixa renda, nos centros urbanos. As experiências neste sentido, entretanto, tem sido negativas, por vários motivos: São residências pequenas, quentes e construídas com materiais de baixa qualidade. Como os indígenas não possuem o costume de habitar e conservar este tipo de moradia, em pouco espaço de tempo elas se encontram deterioradas e sujas, acarretando os mesmos tipos de problemas de saúde anteriormente descritos, além de agredirem visualmente o ambiente.
É importante salientar que muitos arquitetos e urbanistas são unânimes em afirmar que os materiais comumente utilizados pelos indígenas para a construção de suas residências, como o barro e as palhas de palmeiras, são os ideais para climas tropicais como o do Brasil, principalmente para as regiões nordeste, centro-oeste e norte, onde se concentram a maior parte da população indígena, na atualidade.
O grande expoente de experiências adaptativas de residências indígenas e prédios públicos em aldeias, no Brasil, é o arquiteto-indigenista Renato Sanchez. Funcionário da FUNAI, desde a década de oitenta ele percorre as Terras Indígenas do país pesquisando os vários estilos arquitetônicos, materiais e processos construtivistas das etnias indígenas. Desenvolveu conceitos, estratégias e modelos adaptados de moradias e prédios públicos em Terras Indígenas, utilizando materiais tradicionais com tratamento adequado e não-tradicionais, com possibilidade de produção local, utilizando mão-de-obra indígena. Infelizmente seu trabalho nunca foi devidamente prestigiado pelas instituições públicas, inclusive a FUNAI. Devido a isto, não consegue divulgar, ampliar ou transmitir suas experiências para outros profissionais da área.
Existe uma enorme demanda reprimida de construções de moradias em Terras Indígenas. Como a FUNAI precisa ser consultada sobre esses projetos e seus técnicos, sabedores que as moradias projetadas para centros urbanos não são viáveis em aldeias indígenas, tentam, de todas as maneiras, alertar os indígenas sobre o problema e fazer com que as moradias oferecidas pelos programas governamentais sejam adaptadas às realidades culturais locais. De modo geral, entretanto, não possuem os conhecimentos técnicos necessários para o encaminhamento da questão, nem dispõem de normas precisas que possam nortear seus pareceres e procedimentos. Assim, o órgão é constantemente acusado, tanto por gestores públicos quanto por indígenas, de impedir o acesso das comunidades a este beneficio.
Outro grande problema de infraestrutura em Terras Indígenas é a abertura e melhoramento de estradas que dão acesso às aldeias. Não havendo legislação específica firmada sobre o assunto e sendo as Terras Indígenas consideradas áreas de preservação ambiental, as iniciativas públicas de oferecimento deste beneficio esbarram em um cipoal de interpretações técnicas e jurídicas, que dificultam ou mesmo impedem o licenciamento dessas obras. Para efeito de exemplo, o povo Krahô, habitante do estado do Tocantins, teve que lutar por oito anos para ter suas estradas internas melhoradas porque o IBAMA não liberava o licenciamento. A polêmica se iniciou quando uma funcionária da FUNAI emitiu um parecer, posteriormente ratificado pela área jurídica da instituição, onde afirmava que o chamado “material de empréstimo” (cascalho) que seria utilizado para revestimento primário das vias de acesso é considerado um mineral e, portanto, o licenciamento deveria passar pelo Congresso Nacional. Não adiantaram os repetidos argumentos dos indígenas e seus aliados, que o material não seria retirado para ser comercializado, mas apenas para revestir as estradas, beneficiando as próprias comunidades Krahô. Finalmente o licenciamento foi liberado, através de um “estratagema” técnico, não previsto em nenhuma legislação.
A questão do acúmulo de lixo industrializado é outro grande problema que afeta as aldeias. Materiais plásticos, garrafas ‘pet”, vidros, latas, entre outros, são jogados no meio-ambiente, sem nenhum serviço de coleta ou outras iniciativas de reaproveitamento e descarte desses materiais. De modo geral, os gestores públicos municipais culpam a precariedade das vias de acesso, para a inexistência da coleta e aí voltamos ao problema anterior.
Como se vê, criar normas técnicas e aprovar legislações específicas para questões como a construção de moradias, coleta de lixo e melhoramento das vias de acesso às aldeias, configuram-se como grandes desafios do indigenismo. Junho de 2014.