melgarejoDe acordo com o pesquisador Leonardo Melgarejo, representante do Ministério do Desenvolvimento Agrário na Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), órgão responsável pela autorização do uso dos transgênicos no Brasil, o processo de avaliação dessas substâncias tem falhas e vícios. O interesse das empresas, em sua opinião, acaba prevalecendo em relação às pesquisas dos cientistas.

Melgarejo, que é engenheiro agrônomo, mestre em Economia Rural e doutor em Engenharia da Produção pela UFSC, também funcionário do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra-RS), defende estudos independentes e aponta os malefícios à saúde humana e ao meio ambiente provocados pela inserção dos transgênicos nas lavouras. É preciso, segundo ele, mudar os métodos de avaliação com estímulo do governo para as pesquisas.

 

A forma pela qual se dá a autorização dos transgênicos no Brasil está adequada ou não?

A Lei de Biossegurança que vigora no país é bem estruturada, parte do princípio que a empresa que liberar um produto transgênico tem que apresentar certos estudos. Uma comissão interna de biossegurança é responsável por apresentar o pedido, e provar que segue as normas da CTNBio. Os membros da CTNBio decidem por maioria se aquelas informações são suficientes. Em que pesem as virtudes desse modelo, ele tem vícios que permitem preocupação. Os estudos apresentados para sustentar a segurança dos transgênicos, por exemplo, são produzidos pelas empresas que produzem os transgênicos. Então, não é de esperar que elas encontrem muitos problemas. São raros os estudos independentes feitos por instituições não vinculadas ao agronegócio, e os membros da CTNBio podem considerá-los insuficientes e pedir mais informações. O grupo mais afeito para esse princípio da precaução com freqüência pede mais estudos, é a chamada diligência na CTNBio. Quando o processo é encaminhado pode ser aprovado, recusado e colocado em diligência.

Em todos os casos aprovados até agora que participei nos processos de avaliação, a CTNBio apresentou argumentos que pediam mais estudos, afirmando que o disponibilizado não bastava para garantir a segurança e por maioria decidiu que não eram necessários. É alarmante, porque em alguns casos eram previstos pela própria CTNBio. A norma do órgão diz que é necessário fazer estudos nutricionais com animais consumindo os transgênicos durante duas gerações, isso é importante porque o ciclo de vida implica em mudanças no metabolismo. Durante a adolescência e a puberdade a gente percebe com facilidade essas transformações. Mas isso acontece também com as plantas na época da floração e com os animais, então são necessários esses momentos para verificar se durante as alterações metabólicas os transgênicos não implicariam em caminhos inesperados. Mas não temos esses estudos, embora a CTNBio solicite em suas normas, assim como os estudos com animais em gestação.

A Lei de Biossegurança é boa, mas possibilita vícios onde a interpretação de alguns permite que determinadas áreas de conhecimento tenham resultados tão nebulosos que outros não considerem suficientes para decidir. E o agricultor paga mais caro por uma semente transgênica, porque ela resiste ao herbicida e facilita o controle da lavoura. Uma planta que não morre com um bom herbicida, o proprietário não precisa se preocupar muito a respeito quando vai aplicar o veneno: clima, estágio de desenvolvimento das outras plantas, simplesmente joga o veneno por cima e a sua lavoura transgênica não morre. Então não existe agricultor que compre essas sementes e não coloque herbicida nessas plantas, mas acontece que eles têm uma função hormonal: são absorvidos pela planta e metabolizados no interior dela, e com o tempo são degradados e desaparecem. Antes disso, porém, estão circulando no grão de pólen, na seiva, então quando você planta transgênico e joga veneno em cima, o período necessário para colher aqueles grãos sem que exista risco é um período de carência nem sempre respeitado. Portanto, todo estudo nutricional feito com animal para garantir que o transgênico com veneno não faz mal deveria ser feito com lavouras que foram plantadas, tratadas com veneno e recolhido o grão com uma aplicação recomendada pelos aplicadores. No entanto, os testes nutricionais que a gente tem observado não respondem a essa lógica, é como se fizesse uma lavoura específica para coletar o grão de milho que vai ser usado no teste nutricional. É usada só a semente mais cara, porque só ela pode tomar banho de veneno, o que gera uma informação que nos parece viciada. Esses estudos são partes das falhas de processo que consideramos comprometedoras das normas de biossegurança.

Pode se entender, portanto, que os transgênicos fazem mal a vida humana e ao meio ambiente através desses estudos?

Temos estudos que afirmam isso textualmente. Tem um trabalho do professor José Domingo, que começa com uma pergunta metodológica: onde estão as evidências de que os transgênicos não fazem mal para a saúde e para o meio ambiente? Conclui que não existem, apoiado no fato de que a maior parte dos estudos é incompleta, insuficiente ou produzida por instituições interessadas em obter esses resultados. Seria possível obter informações consistentes desde que houvesse estímulo a estudos independentes. Imagine a facilidade se em criações de animais o governo determinasse que certos lotes seriam alimentados somente com transgênicos e outros com grãos crioulos, e acompanhassem essa evolução. Seria possível, sem alterar em nada nos demais procedimentos, verificar se surgem anomalias. Alguns animais abatidos sofreriam análises necessárias para verificar se têm problemas intestinais, no rim e no fígado. Os raros estudos independentes sugerem, como o do famoso professor Serralini na França, que os ratos alimentados com o milho NK 603 adquirem câncer a partir dos 120 dias em taxas muito superiores aos alimentados com grão não transgênico ou transgênico sem aplicação de herbicida. E os danos são distintos no sexo masculino e feminino, nas fêmeas os cânceres nas glândulas mamárias são muito comuns e nos machos os danos nos rins. Esse estudo provocou uma discussão no mundo inteiro, e aqui no Brasil um grupo e vários representantes da sociedade solicitaram que a CTNBio fizesse uma reavaliação da sua decisão de liberar aquele milho porque no passado não tínhamos todas as informações. A CTNBio considerou aquela avaliação suficiente, e o estudo do francês equivocado. Na Comunidade Econômica Européia foi liberado um recurso substantivo para que esses estudos sejam refeitos. Vamos torcer para que não encontrem problema, porque se não teremos um período entre o momento que inicia o estudo e o que a sociedade brasileira está comendo câncer.

Como se dá essa relação entre governo e empresa, saúde pública e mercado? E qual seria o caminho para não usar transgênico, levando em consideração a justificativa da escala da produção de alimentos?

É verdade que as campanhas de marketing dos transgênicos asseguram que sem eles não é possível alimentar a humanidade. Também asseguram que beneficia o ambiente reduzindo o uso de agrotóxicos, e que implica em mais segurança para os aplicadores e agricultores. Mais ainda, prometem que haverá transgênicos resistentes às secas e que os produtos transgênicos atuais são melhores para a saúde. Na prática, nada disso é verdade: 99,9% dos transgênicos são plantas transformadas para tomar um banho de veneno sem morrer e que, portanto, carregam seus resíduos. Ou são transformadas para produzir dentro de si uma proteína inseticida, que é venenosa para os insetos, ou que fazem as duas coisas ao mesmo tempo. Isso acontece nas lavouras de milho, soja e algodão no Brasil. Ao mesmo tempo em que expandiu o cultivo dessas plantas cresceu o consumo de venenos, então a taxa de expansão dessas áreas cultivadas que deveria implicar em menor uso de agrotóxicos demonstra o contrário. Novos transgênicos estão em avaliação pela CTNBio, variedades de milho e de soja tolerantes ao 2,4-D e ao Dicamba, que são herbicidas de alta toxicidade. A substituição, por exemplo, do glifosato, que causa danos alarmantes, é equivalente a pararmos de tomar cachaça e passarmos a beber querosene: de algo tóxico para algo extremamente tóxico. Vamos jogar de avião produtos extremamente perigosos substituindo os que são perigosos. A promessa de maior segurança para a saúde e o ambiente fica desmistificada com esse exemplo.

O que está por trás é o interesse das empresas que produzem essas plantas e esse discurso de marketing. Esse interesse é legítimo, os acionistas buscam alcançar seus objetivos. Aparentemente esse esforço se dá de várias maneiras, entre eles ajudando aos pesquisadores a montar seus laboratórios, políticos a montarem suas campanhas eleitorais, ajudando legisladores, de tal maneira que se forma um grande leque de esforços e apoio à tecnologia. É um grande leque de apoio ao negócio associado, e não a ciência que está por trás dos conhecimentos necessários para garantir a segurança desse negócio. A associação entre as empresas, o governo, o mercado e os negócios, está associada a essa questão. Fala se muito em portas giratórias entre as empresas e as agências reguladoras quando se avalia o mercado norte-americano, nesse sentido recomendo o filme O mundo segundo a Monsanto, do livro da jornalista francesa Monique Robin, que faz uma análise dessas relações.

(*) Fonte: Associação Brasileira de Agroecologia (ABA).