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Em artigo, Guilherme Delgado, doutor em Economia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) – trabalhou durante 31 anos no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), analisa o significado da atual economia política do agronegócio no Brasil.

Para ele, o campo brasileiro vive numa constante e enorme expropriação por parte do grande capital, representado na figura do agronegócio, e em nada corresponde aos interesses do país.

Trata-se, segundo Delgado, de um pacto de poder, cuja estratégia fundamental é a captura da renda da terra dentro de uma relação extremamente moderna, e não mais ao estilo clássico do ‘latifúndio improdutivo’.

Como exemplo, o economista destaca duas situações recentes no âmbito do legislativo: novo Código Florestal e a PEC 215/2000, que transfere ao Congresso as funções de identificação-demarcação das terras indígenas.

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Ambos os exemplos “seriam ininteligíveis numa democracia de massas, sem a devida compreensão sobre os arranjos de economia política que conformam atualmente o poder político no Brasil, praticamente desde a estruturação de virtual pacto de economia política no início dos anos 2000”, acredita.

Abaixo, leia o artigo na íntegra:

O Que Significa a Economia política do Agronegócio no Brasil Atual (Anos 2000)

Guilherme C. Delgado

1 – Introdução

Duas situações recentes no âmbito do legislativo – a tramitação da revisão do Código Florestal e a votação da PEC 215/2000 (transfere ao Congresso as funções de identificação-demarcação das terras indígenas), seriam ininteligíveis numa democracia de massas, sem a devida compreensão sobre os arranjos de economia política que conformam atualmente o poder político no Brasil, praticamente desde a estruturação de virtual pacto de economia política no início dos anos 2000. Nos dois casos citados, a denominada bancada ruralista (Frente Parlamentar da Agropecuária) dominou e impôs seu texto, à revelia parcial do Executivo.

No caso da terra indígena, embora assunto ainda em aberto, a Ministra Gleise Hoffman da Casa Civil, já se apressou em prometer aos ruralistas a retirada da FUNAI do processo de demarcação e sua remessa ao Ministério da Agricultura e Pecuária, tradicionalmente vinculado aos ruralistas.

Não obstante evidências óbvias de que a posse, propriedade e uso da terra (recursos naturais) e sua concentração são hoje uma estratégia essencial ao estilo de acumulação de capital, que se reforçou no Brasil na última década, os arautos dessa economia (do agronegócio), com complacência dos desinformados, negam a situação real, para justificar interesses.

Neste texto vou propor uma leitura da economia do agronegócio como pacto de poder, com estratégia fundamental de captura da renda da terra, à revelia dos interesses mais gerais do País que ai não cabem. Esse pacto de poder, contudo, é uma construção hegemônica moderna e não uma dominação clássica ao estilo ‘latifúndio improdutivo’. Apresenta simultaneamente um caráter de economia política, no sentido das alianças de classe social para captura do excedente econômico; política econômica explícita de Estado (ver a generosidade dos Planos de Safra há mais de uma década); e projeto de hegemonia ideológica.

2 – Reestruturação da Economia do Agronegócio nos anos 2000.

Aquilo que se reestrutura, reafirma uma estrutura anterior em processo de adaptação às novas condições situacionais. Isto é precisamente o que ocorreu com a economia do agronegócio – um sistema de relações de produção das cadeias agroindustriais com a agricultura, alavancado pelo sistema de crédito público e pela renda fundiária (mercado de terras).

Colocado de forma como realmente o é estruturalmente, e não da maneira superficial – (agronegócio é empiricamente definido como soma dos negócios no e com o agro), a economia do agronegócio requer ação concertada do Estado, sem o que essa estrutura não existiria, na acepção de estratégia de economia política. Neste sentido, a construção histórica da atual economia do agronegócio vem lá da época dos militares, aliados aos tecnocratas da “modernização conservadora”, que esculpiram a partir de 1964, particularmente desde 1967, um Sistema Nacional de Crédito Rural e um mercado de terras completamente desregulado do Estatuto da Terra (Lei 4504/dez de 1964) e do Código Florestal (Lei n. 4771/ de set de1965). (1)

Em contrapartida, forja-se a acumulação de capital no âmbito desses setores amalgamados pelo dinheiro público – complexos agroindustriais-agricultura, sistema de crédito e mercado de terras, como novo estilo de capitalismo agrário, à margem da função social e ambiental da propriedade fundiária, conceito criado pelo Estatuto da Terra e complemento ignorado pela política agrícola do período.

“Observe-se que a ‘modernização conservadora” dos militares ocupou a cena “manu-militari”, e exerceu esse projeto impondo pela força bruta suas estratégias de poder. Reservou aos grupos sociais não atendidos – os vários campesinatos excluídos e expelidos da terra e os trabalhadores assalariados, a violência das armas das forças de terra – policiais e militares.

O fim do regime militar, sucedido por período de transição, que reorganiza o Estado e suas ações políticas depois da Constituinte, dá vez às novas demandas sociais (Ordem Social). Afetaria este projeto, desorganizando-, de certa forma.

Por outra via, a emergência de uma orientação neoliberal nas relações internacionais também iria afetar a modernização conservadora da agricultura, sem, contudo abrir espaço político para uma reforma profunda da estrutura agrária. De maneira muito sintética, podemos caracterizar esse período dos meados dos anos 80 ao final dos anos 90, como período de transição entre duas grandes alianças do poder agrário com o Estado: 1) 1965-85 (Modernização Conservadora) e 2) “Economia do Agronegócio” (anos 2000). Nossa análise neste texto concentra-se neste segundo período.

2.1 – Reestruturação como Hegemonia Política voltada à ‘Reprimarização’ do Comércio Externo

No final dos anos 90, passada a inviável experiência do primeiro governo FHC – de acumulação de déficits externos crescentes e contínuos, o Brasil vira “bola da vez” da especulação financeira internacional em 1999 – (crise cambial), o que forçaria o segundo Governo FHC a reorganizar sua política econômica externa, tendo em vista gerar saldos comerciais de divisas a qualquer custo. Aqui começa a reestruturação econômica da economia do agronegócio, diretamente vinculada à expansão mundial das “commodities”.

Em pouco mais de uma década, 1999-2012 o País quintuplica em dólares suas exportações – passando de 50,0 bilhões a 250,00 bilhões. Nesse “boom” exportador, os produtos primários – “básicos” e “semi-elaborados”, ganham posição protagônica, enquanto as manufaturas vão saindo das “exportações” e ingressando paulatinamente nas “importações”- (entre os anos 1995/99 e 2008/10 os produtos ‘primários’ pulam de 44,0% para 54.3 % da pauta exportadora, enquanto os ‘manufaturados decrescem proporcionalmente).

O processo de reestruturação econômica é conhecido, não necessitando maiores detalhes. Menos conhecido é o papel do Estado pelo lado do Sistema Nacional de Crédito Rural (fortemente expansivo) e pela política fundiária (completamente desregulada), que darão pela via estatal o beneplácito à acumulação e à especulação fundiária. (2)

É importante constatar as similitudes e diferenças da articulação econômica das cadeias agroindustriais, sistema de crédito público, e propriedade fundiária ora sob análise, comparativamente ao arranjo econômico da época dos militares no poder. Nos dois processos persegue-se lucro e renda fundiária propiciados pelas “vantagens comparativas naturais”, que se tornam atrativos explorar. Mas o arranjo político atual é diferente do anterior.

A economia do agronegócio vai além da estratégia econômica, para construir ideologicamente uma hegemonia pelo alto – da grande propriedade fundiária, das cadeias agroindustriais muito ligadas ao setor externo, e das burocracias de Estado (ligadas ao dinheiro e à terra), tendo em vista realizar um peculiar projeto de acumulação de capital pelo setor primário. Essa estratégia tem agora certa centralidade no sistema econômico, diferentemente da subsidiariedade à industrialização, como fora no passado.

A esse projeto, fortemente assentado na captura e super exploração das vantagens comparativas naturais ou de sua outra face da moeda – a renda fundiária, organizam-se vários aparatos ideológicos e de Estado, ausentes na “modernização conservadora”:

• Uma bancada ruralista ativa, com ousadia para construir leis casuísticas e desconstruir regras constitucionais;

• Uma Associação de Agrobusiness, ativa para mover os aparatos de propaganda para ideologizar o agronegócio na percepção popular;

• Um grupo de mídias – imprensa, rádio e TV nacionais e locais, sistematicamente identificado com formação ideológicas explícita do agronegócio;

• Uma burocracia (SNCR) ativa na expansão do crédito público (produtivo e comercial), acrescido de uma ação específica para expandir e centralizar capitais às cadeias do agronegócio (BNDES);

• Uma operação passiva das instituições vinculadas á regulação fundiária (INCRA, IBAMA E FUNAI), desautorizadas a aplicar os princípios constitucionais da função social da propriedade e de demarcação e identificação e da terra indígena;

• Uma forte cooptação de círculos acadêmicos impregnados pelo pensamento empirista e completamente avesso ao pensamento crítico.

3 – Limites e Implicações ao Desenvolvimento do Pacto de Poder pelo Setor Primário

Se analisarmos com a devida atenção o desempenho recente (anos 2000) da economia brasileira, identificaremos uma característica peculiar. Os setores e atividades que se expandem com maior velocidade, puxados pela demanda externa e pelos investimentos públicos – a economia do agronegócio, a mineração, a exploração petroleira e a hidroeletricidade, apresentam a dotação (monopólio) de recursos naturais como causa primeira da mais elevada competitividade externa das “commodities”, produzidas ou produzíveis por esses setores e atividades.
Mesmo nesses “setores” dependentes dos monopólios naturais há diferenças qualitativas naquilo que é o motor causal da expansão econômica – a produtividade do trabalho. Mas aqui, há uma controvérsia importante sobre o vetor que a impele: o progresso técnico ou a vantagem comparativa natural. No caso específico do petróleo, “commoditie” cujo preço externo vai de quinze a 100,00 dólares/barril – do início ao final da década, é, sobretudo o progresso técnico (tecnologia da exploração em águas profundas), com fortes conexões com demandas interindustriais (mecânica, eletrônica, química, etc), o fator de desenvolvimento que propicia a extração do petróleo, e portanto a captura das vantagens internacionais de País detentor de reservas naturais.

Por outro lado, para o gênero das “commodities” agropecuárias e minerais, em forte expansão no período recente – soja, milho, carnes, açúcar-álcool, celulose de madeira, café, minério de ferro, bauxita-alumínio, etc., o fator causal da expansão é a dotação natural de recursos, extensiva e intensivamente explorados conforme padrão de uma tecnologia pré-existente, largamente disseminada à escala internacional, há décadas.

Em tais condições, a expansão econômica das “commodities” puxada pelo setor externo, que por sua vez conduz à especialização primário-exportadora, gera um processo vicioso de crescimento econômico.

Isto porque tal forma de inserção especializada no comércio externo, associada ao binômio vantagens comparativas naturais – renda fundiária e apenas secundariamente ao progresso técnico (industrial), limita fortemente o desenvolvimento econômico e social de um País industrializado, com mais de 80% de população urbana.

Acresce observar que esse estilo da expansão reforça a concentração fundiária, visto ser a captura da renda fundiária um dos seus motores. Ademais, expelido a progresso técnico à condição lateral da expansão econômica, praticamente o sistema industrial e de serviços ficam marginalizadas do comércio externo (“locus” de aferição da produtividade), tornando-se fortemente deficitários, com é o caso atual.

Observe-se que é a especialização na “produtividade” dos recursos naturais e não o seu aproveitamento racional o fator de atraso, que ora estamos apontando. Isto fica ainda mais grave quando a essa especialização corresponde no mesmo período histórico um processo visível do enfraquecimento do setor industrial, cujos investimentos declinam ano a ano, provocando perda de produtividade do trabalho no conjunto do sistema econômico.

3.1 – Consequências Sociais e Ambientais

A especialização primário-exportadora, da forma como vem sendo construída, interna e externamente, requer super exploração de recursos naturais, extensiva e intensiva, como resposta aos requerimentos crescentes de solvência das transações externas. Estas, de longa data, geradoras do déficit nos “Serviços” – (juros, lucros e dividendos, turismo, transporte, etc), ora superdimensionados, agravam-se pelo emergente déficit comercial das manufaturas.

Em tais condições o setor primário fica escalado para superexplorar recursos naturais com exportação de “commodities”. Provoca evidentemente consequências ambientais, que são custos sociais não internalizados na conta do empreendedor, mas completamente detectáveis na conta da sociedade – desmatamentos e queimadas por um lado, com inegáveis contribuições ao efeito estufa; e intensificação do pacote técnico agroquímico, expandido fortemente, à taxa de 15% a.a. na utilização de agrotóxicos.
As contaminações de solos, água superficiais e subterrâneos, alimentos e principalmente pessoas são um caldo de cultura desse estilo de agricultura de monocultivos. O agravante no caso é a relativa desarticulação dos órgãos públicos de prevenção e fiscalização (ANVISA), que não escapam ao crivo de controle político do agronegócio.

Por sua vez, as relações agrárias e trabalhistas criadas e recriadas por esse estilo de expansão, promovem forte concentração da produção e da propriedade e baixa densidade de incorporação do trabalho humano.
Recente artigo publicado pela “Revista de Política Agrícola”, do Ministério da Agricultura
– “Lucratividade na Agricultura” (3), informa, com certa jactância, que segundo dados do Censo Agropecuário de 2006, cerca de 27,0 mil grandes estabelecimentos, dos 4,4 milhões existentes, são responsáveis por 51% do Valor de Produção Bruta daquele ano.

O mesmo Censo Agropecuário de 2006 revela duas outras informações muito preocupantes: 1) não melhorou a concentração da propriedade fundiária no período intercensitário 1996/2006, cujo Índice de GINI é respectivamente de 0,856 e 0,854,;2) cai o “Pessoal Ocupado” na agropecuária (–) 8,9% não obstante crescimento de 83,5% das “Áreas de Lavouras” (mais 41,8 milhões de Há no período.).

4 – Crise do Projeto e as Articulações Contra Hegemônicas

Diferentemente de “Modernização Conservadora” dos militares, suportada pelo crescimento industrial e pelas Armas da República, a economia do agronegócio se estruturou ao abrigo da inserção primário exportadora de uma economia mundial em ciclo de forte expansão do comércio internacional de “commodities”.

Mas forjou-se internamente como bloco hegemônico, manipulando com grande competência a arma ideológica do consenso político. Atravessa já quatro mandatos presidenciais – FHC II, Lula I, Lula II e Dilma, com completa aderência do Poder Executivo Federal a essa estratégia de acumulação de capital, cuja pretensão é de autolegitimar-se, submetendo toda política agrária, ambiental e externa ao seu estilo. E isto vem sendo feito de maneira tácita ou ostensiva há mais de uma década, sem que tenhamos atentado para os ingredientes perversos desse projeto, que aparentemente somente se discutem nas crises.

O primeiro sinal visível de crise desse projeto é precisamente a seiva que o alimentou – o “boom” das “commodities” agropecuárias e minerais a serviço do equilíbrio externo. Mas no último triênio cresceram as evidências de declínio dos preços das “commodities”, agravado pela deterioração crescente do déficit em Conta Corrente (seis anos de déficit crescente).

Um segundo sinal visível de crise do Projeto Hegemônico, malgrado sua invisibilidade nos espaços públicos, é certa articulação de vários setores excluídos ou expelidos desse pacto de poder. Movimentos campesinos, a exemplo da “Articulação dos Povos da Terra, das Águas e das Florestas”, povos indígenas, grupos quilombolas, assentados de reforma a agrária e agricultores familiares em geral, tentam se articular, numa perspectiva contra hegemônica.

De outra parte, iniciativas, tipicamente urbanas como a “Campanha contra os Agrotóxicos”, fustiga, pelo lado de saúde pública, com denúncias sobre as implicações epidemiológicas do agronegócio.

Por sua vez, do lado das políticas públicas há claramente redutos de proteção da contra hegemonia no campo – a educação popular, a saúde pública, o meio ambiente, a previdência social, segurança alimentar etc, e uma política de governo – O Programa de Aquisição de Alimentos de Agricultura Familiar. Mas tais campos da ação do Estado não são articulados para estabelecer limites à estratégia do agronegócio, mas o contrário.

Falta um projeto estratégico de desenvolvimento da agricultura familiar, com autonomia relativamente à economia do agronegócio.

Dependendo da evolução da crise externa, o(s) projeto(s) de desenvolvimento contra hegemônicos tornar-se-iam viáveis ou não, a depender da mobilização social e das respostas políticas do governo. Até o presente temos tido respostas no sentido negativo, qual seja o de aprofundar o pacto do agronegócio.

NOTAS

(1) – Para uma análise histórica da modernização técnica do período militar ver – Delgado, Guilherme C. –“Capital Financeiro e Agricultura no Brasil (1965-1985) – São Paulo – ÍCONE-UNICAMP – 1985 (cap. 1-3)
(2) Para uma análise da reestruturação da economia do agronegócio nos anos 2000 – ver Delgado, Guilherme C. “Do ‘Capital Financeiro na Agricultura’ à Economia do Agronegócio – Mudanças Cíclicas em Meio Século (1965-2012) – Porto Alegre – Ed. UFRGS – 2012 (Cap. 5)
(3) Alves, Eliseu et alli – “Lucratividade na Agricultura” – in Revista de Política Agrícola – Ano XXI, n. 2 – Abril/Maio/junho de 2012, pag. 45-63