Por Péricles de Oliveira, de Botucatu (SP)
Perante uma atenta plateia composta por mais de 3 mil pessoas, a renomada cientista indiana Vandana Shiva fez uma palestra de uma hora, respondeu a perguntas e encantou a todos com suas ideias, experiências e convicções, durante a abertura do III Encontro Internacional de Agroecologia, no dia 31 de julho, na cidade de Botucatu, interior de São Paulo.
Vandana foi muito contundente ao longo de toda a sua fala. Começou contando de sua vida, de como havia estudado biologia e física quântica na universidade e de como se considerava uma pessoa alienada da realidade do mundo.
Esclareceu que o choque que a fez despertar foi um grave acidente ocorrido, 30 anos atrás, numa fábrica de pesticidas – que resultou numa tragédia, com a morte de mais de 35 mil indianos. A partir daí, é que ela acaba se convertendo à causa do povo e não para mais de pesquisar a ação das empresas transnacionais sobre a agricultura.
Hoje, ela é considerada uma das principais pesquisadoras dos malefícios para a saúde humana e para a destruição da biodiversidade que as sementes transgênicas e os agrotóxicos das empresas transnacionais vêm causando em todo o mundo.
“Revolução Verde”
Vandana falou sobre as consequências da chamada Revolução Verde, imposta pelo governo dos Estados Unidos, na década de 1960, a toda a sua área de influência como forma de vender mais insumos agroquímicos e suas mercadorias agrícolas.
O resultado disso – o de subjugar países e camponeses – pode ser visto hoje, já que 65% de toda a biodiversidade e dos recursos de água doce do planeta foram contaminados por agrotóxicos.
Além disso, há estudos comprovando que 40% de todo o efeito estufa que afeta o clima no planeta é causado pelo uso exagerado, desnecessário, de fertilizantes químicos na agricultura. Chegou a dizer, inclusive, que em muitas regiões da Europa, em função da mortandade e desaparecimento das abelhas, a produtividade agrícola já teria caído 30%.
A indiana atentou para o fato de que se fôssemos calcular os prejuízos e custos necessários para repor a biodiversidade e reequilibrar o meio ambiente com vistas a amenizar os desequilíbrios climáticos, eles seriam maiores, em dólares, do que todo o comércio de commodities que as empresas realizam.
Genocídio
Em relação à ação das empresas transnacionais que atuam na agricultura – como Monsanto, Bunge, Syngenta e Cargill – também não poupou críticas. Denunciou que elas controlam a produção e o comércio mundial da soja, milho, canola e trigo. E que fazem propaganda enganosa dizendo que a humanidade depende dos alimentos produzidos pelo agronegócio para sobreviver, quando na prática a humanidade se alimenta com centenas de outros vegetais e fontes de proteínas, que elas ainda não puderam controlar.
Disse que essas “empresas, ao promoverem as sementes transgênicas, não inventaram nada de novo. Não desenvolveram nada. O único que fizeram foi fazer mutações genéticas que existem na natureza para viabilizar a venda de seus agrotóxicos”.
Citou que a Monsanto conseguiu controlar a produção de algodão na Índia, apoiada por governos subservientes, neoliberais, e que hoje 90% da produção depende de suas sementes e venenos. Com isso houve uma destruição do modo camponês de produzir algodão e um endividamento dos que permaneceram.
A conjunção do alto uso de venenos intoxicantes que levam à depressão e a vergonha da dívida fez com que, desde 1995 até os dias de hoje, houvesse 284 mil suicídios entre os camponeses indianos. Um verdadeiro genocídio escondido pela imprensa mundial e cuja culpada principal seria a Monsanto.
Apesar de tantos sacrifícios humanos, a Monsanto ainda recolhe em seu país 200 milhões de dólares anuais, cobrando royalties pelo uso de sementes geneticamente modificadas de algodão.
Commodities não são alimentos
O modelo do agronegócio é apenas uma forma de se apropriar do lucro dos bens agrícolas, mas ele não resolve os problemas do povo. Tanto é que aumentamos muito a produção, poderíamos inclusive abastecer 12 bilhões de pessoas [quase o dobro da população mundial], mas, no entanto, temos 1 bilhão de pessoas que passam fome todos os dias, sendo 500 milhões delas camponesas que vivem no meio rural e que tiveram seu sistema de produção de alimentos destruído pelo agronegócio.
As commodities agrícolas são meras mercadorias agrícolas, não são alimentos. Cerca de 70% de todos os alimentos do mundo ainda são produzidos pelos camponeses.
É preciso entender que alimentos são a síntese da energia necessária que os seres humanos precisam para sobreviver, a partir do meio ambiente em que vivem, recolhendo essa energia d a fertilidade do solo e do meio ambiente.
Quanto maior a biodiversidade da natureza, maior o número de nutrientes e mais sadia será a alimentação produzida naquela região para os humanos. E o agronegócio destrói a biodiversidade e as fontes de energia verdadeiras.
As empresas lançam mão de um fetiche gerado pela propaganda, de que estão usando modernas técnicas de biotecnologia para aumentar a produtividade das plantas, mas isso é um engodo. Quando se vai pesquisar o que são tais biotecnologias, elas são guardadas em segredo. Porque, no fundo, elas não mudam nada na natureza. São apenas mecanismos para aumentar a rentabilidade econômica das grandes plantações.
Na verdade, a agricultura industrial é a padronização do conhecimento, é a negação do conhecimento sobre a arte de cultivar a terra. Porque o verdadeiro conhecimento é desenvolvido pelos próprios agricultores, e pelos pesquisadores, em cada região, em cada bioma, em cada planta.
Consumidores
O modelo do agronegócio quer transformar as pessoas apenas em “consumidores” de suas mercadorias. Vandana nos diz que devemos combater o uso e o reducionismo da expressão “consumidores”, que devemos usar o termo “seres humanos”, pessoas que precisam de uma vida saudável. “Consumidor” indica uma redução subalterna do ser humano.
As empresas do agronegócio dizem que são o desenvolvimento e o progresso. Na prática, chegam a controlar 58% de toda produção agrícola do mundo, porém, dão trabalho para apenas 3% das pessoas que vivem no meio rural. Portanto, o agronegócio é um sistema antissocial.
A indiana revelou ainda que fez parte de um grupo de 300 cientistas de todo mundo que se dedicam a pesquisar a agricultura e que após realizarem diversos estudos, durante três anos, comprovaram que nem a Revolução Verde imposta pelos Estados Unidos, nem o uso intensivo das sementes transgênicas e dos agroquímicos podem resolver os problemas da agricultura e da alimentação mundial. Algo que só pode acontecer por meio da recuperação de práticas agroecológicas que convivam com a biodiversidade, em cada local do planeta.
Vandana concluiu sua crítica ao modelo do agronegócio dizendo que ele projeta a destruição e o medo, porque é concentrador e excludente. Por isso, tornou-se algo comum o costume dessas empresas ameaçarem ou cooptarem os cientistas que se opõe a elas.
A saída é a agroecologia
Após criticar duramente o modelo do capital, a cientista dedicou sua palestra a projetar as técnicas ou o modelo de produção da agroecologia como a alternativa popular e necessária para produção de alimentos.
Defendeu que o modelo da agroecologia é o único que permite desenvolver técnicas de aumentar a produtividade e a produção sem a destruição da biodiversidade.
Que a agroecologia é a única forma de criar empregos e formas de vida saudáveis para a população permanecer no campo e não ter de se marginalizar nas grandes cidades. Sobretudo, fez a defesa de que os métodos da agroecologia são os únicos que conseguem produzir alimentos sadios, sem venenos.
Dificuldades da transição
Quando perguntada sobre as dificuldades da transição entre os dois modelos, contestou, citando a Índia: “Nós já tivemos problemas maiores na época do colonialismo inglês. No entanto, Gandhi nos ensinou que a nossa fortaleza é sempre ‘lutar pela verdade’, porque o capital engana e mente para poder acumular riquezas. Mas a verdade está com a natureza, está com as pessoas”.
Dessa energia que emana de Gandhi, Vandana reforçou: “Se houver vontade política para fazer a mudança, se houver vontade para produzir alimentos sadios, será possível cultivá-los”.
Vandana concluiu conclamando a todos a se envolverem e participarem do Encontro Mundial de Luta Pelos Alimentos Sadios e Contras as Empresas Transnacionais que a Via Campesina, os movimentos de mulheres e centenas de entidades realizam todos os anos, na semana de 16 de outubro. “Precisamos unificar as vozes e as vontades em nível mundial. E essa será uma ótima oportunidade.”
Recomendações
Quando perguntada sobre as recomendações que daria aos jovens, aos estudantes de agronomia, aos agricultores praticantes da agroecologia, Vandana Shiva elencou seis pontos:
Primeiro: disse que a base da agroecologia é a preservação e a valorização dos nutrientes que há no solo. Neste instante, a indiana fez referência a outra cientista presente na plateia que a assistia muito atenta, a professora Ana Maria Primavesi. “Precisamos ir aplicando as técnicas que garantam a saúde do solo, e dessa saúde, recolheremos frutos com energia saudável.”
Segundo: estimular que os agricultores controlem as sementes. As sementes são a garantia da vida. “Nós não podemos permitir que as empresas transnacionais transformem nossas sementes em meras mercadorias. As sementes são um patrimônio da humanidade.”
Terceiro: precisamos relacionar a agroecologia com a produção de alimentos saudáveis que garantam a saúde e assim conquistar os corações e mentes da população da cidade, que está sendo cada vez mais envenenada pelas mercadorias com agrotóxicos. “Se vincularmos os alimentos com a saúde das pessoas, ganharemos milhões de pessoas da cidade para a nossa causa.”
Quarto: precisamos transformar os territórios em que os camponeses têm hegemonia em verdadeiros santuários de sementes, de árvores sadias, de cultivo da biodiversidade, da criação de abelhas, da diversidade agrícola.
Quinto: precisamos defender a ideia que faz parte da democracia, a liberdade das pessoas de terem opções de alimentos. Elas não podem mais serem reféns dos produtos que as empresas colocam nos supermercados de acordo com a sua vontade apenas.
Sexto: precisamos lutar para que os governos parem de usar dinheiro público – que é de todo o povo – para subsidiar, transferir esses recursos para os fazendeiros. Isso vem acontecendo em todo o mundo e também na Índia. O modelo do agronegócio não se sustenta sem os subsídios e vantagens fiscais que os governos lhes garantem.
Foto: EIA
(*) Fonte: Brasil de Fato.