ato abi agraiaMártires representados pelos 21 mortos de Eldorado dos Carajás, em 17 de abril, foram lembrados na noite de ontem (15) durante o ato pela Reforma Agrária e Justiça no Campo. A atividade, realizada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), lotou o auditório da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no centro do Rio de Janeiro. Cerca de 500 pessoas, dentre parlamentares, lideranças sociais, militantes e parceiros do MST, prestigiaram o evento que marca o início da Jornada de Abril do movimento.

 

Como anfitrião da ABI, o jornalista Mario Augusto Jakobskind, conselheiro da casa, destacou a importância da democratização dos meios de comunicação para a realização de uma reforma agrária no Brasil. Sem a desconcentração da mídia, complementou, os movimentos sociais não terão voz nos meios de informação comerciais.

“Todos nós cidadãos com o mínimo de consciência temos que apoiar a reforma agrária. Somos de uma geração de antes de 1968, conhecemos o projeto de roforma agrária do governo João Goulart, que foi o mais progressista e adequado ao Brasil. Já caminhamos para 50 anos da derrubada do seu governo, e os mesmos setores hoje tentam brecar a reforma agrária. Temos o agronegócio como a rainha dos olhos das forças conservadoras, que dominam o congresso. Nós jornalistas não compactuamos com a mídia de mercado, que criminaliza movimentos sociais e coloca a reforma agrária no pé da página. A luta pela democratização dos meios de comunicação vem junto com a reforma agrária, porque sem isso não a realizaremos”, afirmou.

Hoje o poder judiciário atua, em sua grande maioria, para manter o status quo, manter as coisas como estão, observou Rubens Casara, jurista membro da Associação dos Juízes pela Democracia (AJD). Isso se traduz no Brasil, em sua opinião, mantendo as cidades e o campo com enormes desigualdades. Esse tipo de encontro serve para romper o silêncio, e é o primeiro passo para romper com a tradição autoritária do país, disse.

“Mesmo com partidos de esquerda nós conseguimos construir um Supremo Tribunal Federal extremamente conservador. E quando falamos de terra não é diferente, são muitos mitos e concepções autoritárias, problemas de interpretação e hemenêutica. Os juízes, promotores, e outros agentes acreditam no poder penal para resolver os problemas sociais, enxergam os movimentos sociais como obstáculo à manutenção da ordem. E no campo penal a questão da terra é desqualificada, descontextualizada, e resolvida em caso de polícia até cair no judiciário. É necessário que nós do judiciário olhemos com outro olhar o campo. A democracia é realização dos direitos fundamentais, e a terra é um deles”, afirmou.

Candelária, Carandiru, Corumbiara, Felisburgo, e Eldorado dos Carajás, além do ocorrido há 10 anos na favela do Borel no Rio, todos massacres lembrados na mística de abertura do evento e exemplificados pela historiadora Virgínia Fontes, da Universidade Federal Fluminense, como massacres idênticos que atingem a classe trabalhadora brasileira no campo e na cidade. Segundo ela, somos o país da defesa da grande propriedade a qualquer custo.

“Quero lembrar que a cerca, citada na mística, em referência ao latifúndio, da grande propriedade privada, é da grande propriedade capitalista. Seguimos reproduzindo esse ritual trágico e dramático de truculência e violência, no qual a cerca e a arma são a defesa da propriedade. Somos o país da defesa da grande propriedade, do ponto de vista jurídico e midiático. Não é possível imaginar uma sociedade minimamente democratica com o grau de concentração de propriedade que temos. E a reforma é uma luta fundamental, porque fora dela não teremos comida, muito menos limpa”, observou

O deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL) lembrou que o seu mandato está a serviço da luta pela reforma agrária, e começou sua fala com uma provocação, lembrando um editorial do jornal O Globo de meses atrás. O título dizia que “é cada vez mais desnecessária a reforma agrária”, e o texto concluía dizendo que restava ao MST oficializar um partido e travar o embate eleitoral pois sua luta perdeu a razão de ser. Com este exemplo o deputado lembrou qual o modelo de desenvolvimento que o modelo do agronegócio, aliado à mídia, defende.

“Não cita a violência no campo e a soberania alimentar, é como se não existissem os problemas. Essa concepção de desenvolvimento e país está sendo defendida, é o mesmo do agronegócio, da modernização conservadora da monocultura e a consequência gravíssima da violência e segurança alimentar. A dependência do país. Está ligada a toda a produção da pobreza e ao sistemático desaparecimento desses que são os sobrantes, que são os supérfluos e não estão no consumo. Por isso o direito do consumidor tem prioridade em relação aos direitos humanos na câmara. Segundo o Censo Agropecuária do IBGE, em 2006, a agricultura familiar ocupava 30% das terras, enquanto o agronegócio recebia 86% dos recursos do governo. A agricultura camponesa é responsável por 70% dos alimentos que chegam a mesa dos brasileiros. O Rio de Janeiro, segundo o Ministério do Trabalho em 2009, era o estado com maior grau de concentração de trabalho escravo. Evidente que você tem outro patamar de diálogo com esse governo, mas é inaceitável que o número de assentados da Dilma seja menor até que o do FHC“, criticou.

homenagem-ciceroEm seguida foi feita uma homenagem a Cícero Guedes, dirigente do MST brutalmente morto em Campos dos Goytacazes, no norte fluminense, em janeiro de 2013. Sua família recebeu do deputado a medalha Tiradentes, maior condecoração da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Ele foi lembrado por sua história de vida, como refência na luta pela terra em Campos, cidade onde Cícero morava e há o maior assentamento do MST no estado. Também foi lembrado pela sua presença junto às atividades universitárias e sua luta incansável em defesa dos direitos dos trabalhadores, além de sua notável liderança e militância pela agroecologia. “Reforma agrária sim, trabalho escravo não “, foi uma de suas palavras de ordem lembradas. A sem terra Regina dos Santos, assassinada na mesma cidade 10 dias depois, também foi lembrada.

“Não haverá reforma agrária sem agroeocologia e educação, porque o conhecimento liberta as pessoas”, afirmou João Pedro Stédile, liderança do MST, no encerramento do ato. Para isso, complementou o economista, é preciso construir um projeto da classe trabalhadora com pontes e alianças esquecendo os sectarismos para repautar a luta social no país e a libertação do nosso povo. A história do povo brasileiro, segundo ele, foi marcada desde que chegaram os capitalistas europeus pelo uso da mão de obra por aqueles que dominam o sistema.

De acordo com o dirigente, a classe trabalhadora brasileira, em especial o campesinato, está vivendo dias muito duros e complexos desde a derrota do que ele considera uma batalha histórica em 1989. A correlação de forças que se formou à época, em sua opinião, venceu a disputa política de projeto de país e trouxe o modelo neoliberal que pavimentou o espaço para o capital e derrotou o projeto de reforma agrária. Essa história é banhada pelo sangue de quem luta pela terra, desde os índios, os principais a sofrer na atualidade junto aos quilombolas, passando por Zumbi até chegar aos sem terra mortos nas últimas décadas.

“Havia a possibilidade de termos uma reforma agrárria clássica dentro do projeto popular. FHC deve ser sempre lembrado pela militância como o pior dos governos que esse país já teve, ele usou seu passado de princípe da esquerda e fez todas as mudanças que o capital estrangeiro queria. E o campo foi o que mais sofreu, sobretudo com a Lei de Patentes e Lei Kandir. Ele se utilizou de tanques para calar os petroleiros, e aquela derrota acabou com o movimento sindical brasileiro até hoje. Ficamos sozinhos no campo, e resolvemos cutucar a onça com varas curtas, o que resultou em massacres: Carajás e Corumbiara”.

Ele explicou que veio o governo Lula e o MST tinha a esperança de retomar a reforma agrária clássica, colocaram em janeiro de 2003 cerca de 200 mil famílias acampadas em beiras de estradas porém essa mobilização não foi suficiente para arrancar do governo a retomada da reforma agrária e do projeto popular. “Porque o governo Lula só ganhou as eleições com sua aliança com a burguesia. Esse governo não teve força, coragem, nem vontade e possibilidade de recuperar a reforma agrária. Lula botou o boné do MST na época, a Veja logo avançou e ele ao invés de reagir foi pego depois na crise de 2006. E o agronegócio deu a resposta com dois massacres em 2004: Unaí e Felisburgo”, complementou.

Desde de então se consolidou uma lógica para acumular terras, controlar a produção e dominar a agricultura, na visão de Stedile. “Aquilo que chamamos de agronegócio, um modelo de organização da apropriação do capital dos bens da natureza e da produção agrícola, que nos últimos anos ocorreu para agricultura brasileira: mais de 500 bilhões de dólares injetados pelos estrangeiros. O nordeste está vivenciando a pior seca do século, milhares de cabeças de gado morrerão. O governo dispôs levar milho até de caminhão do exército para alimentá-los, só que as empresas Bunge, Monsanto e Cargill exportaram 18 toneladas para produção de etanol nos EUA”, destacou

O agronegócio hoje controla o judiciário, que enche os movimentos de processos, e domina o legislativo, além da mídia ter se transformado no instrumento fundamental para consolidar sua hegemonia, concluiu. “Os lutadores são condenados antes do parlamento para criar uma opinião pública que justifique uma ação do poder judiciário e depois da polícia. Mas apesar da correlação de força desfavorável, a guerra continua porque nossa causa é justa. Há desafios históricos para os camponeses: seguir denunciando a impunidade; denunciar a contradição do agronegócio – o agrotóxico, concentração de terras, perda de soberania alimentar e invasão do capital estrangeiro; e finalmente denunciar os ataques feitos ao meio ambiente. O que muda na luta pela reforma agrária é que ela agora é também contra o capital, o modelo de dominação e de classe”, ressaltou.