Durante a II Mostra Nacional da Produção das Margaridas, em Brasília, a secretária de mulheres trabalhadoras rurais da Confederação Nacional de Trabalhadores da Agricultura (Contag), Carmen Foro, falou sobre as principais reivindicações e lutas das mulheres camponesas. Segundo ela, a agroecologia há alguns anos é uma das pautas centrais na articulação dos movimentos de mulheres no campo. Apesar da criação da Lei Maria da Penha, em sua opinião, a falta de combate à violência contra a mulher por parte do governo é uma das bandeiras de pressão do movimento em busca de maior proteção às agricultoras. A invisibilidade, tanto pela postura do governo quanto da mídia, foi outra questão observada por ela na entrevista a seguir.
Você disse na abertura da Mostra que 500 anos de dívida com as mulheres não são resolvidos em dez anos de um governo. Quais são os avanços atuais e os principais desafios para as mulheres do campo hoje?
Os avanços que ocorreram são fruto da nossa mobilização. É avanço, por exemplo, o fato de sairmos de casa, nos mobilizarmos, irmos às ruas. Vir a Brasília com uma plataforma política, que tem como centro qual modelo de desenvolvimento e projeto nós queremos para a agricultura familiar no Brasil. Fazendo gradativamente o rompimento com a invisibilidade, daí salta nessa nossa força política a possibilidade de propormos políticas públicas. Várias delas precisam ser ampliadas, fortalecidas e até reolhadas e qualificadas. Eu falo do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), Crédito, inúmeros programas e políticas que estão sendo gestados e experimentados e precisam ser consolidados.
O alcance ao nosso povo ainda é muito pequeno frente a essas conquistas, então as mulheres reclamam ainda da burocracia, da demora, da falta de informação, de pouco recurso investido. A iniciativa, a formulação política de programas muito importantes, é fundamental, mas a gente precisa de mais aportes de recursos e eles precisam estar abertos às críticas e reformulações. Porque se concebe uma política, ela é testada na prática, e a gente tem que perceber se ela corresponde à necessidade das pessoas que vivem lá. Então, o governo tem que ficar sempre aberto para analisar, ajustar e adequar as iniciativas.
Porque muitas vezes a padronização encontra limites na diversidade regional e local.
Exatamente, é preciso respeitar a realidade local. Na construção de uma política pública é preciso uma assistência técnica diferenciada, pois nem sempre ela dá conta de uma dimensão que seja formulada no sul para o nordeste e vice versa, por exemplo. Então é preciso que a gente avance nessa perspectiva do fazer com que a diversidade, a realidade local, seja capaz de ser reconhecida, valorizada, e impulsionada. A gente vive num processo de enorme invisibilidade, e o ato de realizarmos essa mostra aqui é mais do que atingir qualquer processo de comercialização: é um ato de coragem. É a primeira vez que Brasília coloca nossos produtos à vista para visitação do público, e em março faz trinta anos do assassinato de Margarida Alves. É um ato difícil porque sai lá do município e vem para essa cidade fria de decisões fortes, e ousamos dizer que estamos produzindo isso e acreditamos nesse projeto. Feira aqui em Brasília tem um monte, o diferencial da nossa é a diversidade e a expressão das mulheres sobre o que elas estão trabalhando e suas necessidades. Realizamos um seminário antes para fazer essa reflexão, de qual projeto nós queremos continuar afirmando.
Você falou da invisibilidade em relação ao governo, mas e como a mídia entra nesse contexto das mulheres do campo?
No caso de uma Mostra, nós não temos como pagar uma mídia comercial porque é muito cara. Mas provocamos bastante a mídia, e houve uma reação positiva pois ontem os jornais divulgaram aqui em Brasília a realização. Não temos outros meios a não ser internet, facebook, etc. Viramos mídia na Marcha das Margaridas, mas a mídia conservadora não consegue perceber a essência política da nossa mobilização e naquele momento falou apenas que tínhamos vindo a Brasília atrapalhar o trânsito e incomodar os brasilienses. Não absorveu que a nossa presença aqui tem uma causa, que é fazer a defesa de um projeto de vida: produzir alimentos sem agrotóxicos, de que as mulheres na agricultura produzem renda e a agricultura familiar faz parte da economia. É o sustento de muitas famílias, e isso não se divulga.
E qual o papel da agroecologia para as mulheres do campo?
A agroecologia é central para nós. Desde a marcha no ano de 2000 que temos no centro da nossa pauta fazer uma crítica muito forte ao atual modelo de produção agrícola, do investimento que se faz. Evoluímos, maturamos e disputamos no cenário nacional a nossa visão e ideias. É fundamental estarmos mobilizadas e articuladas com conjuntos de organizações sociais importantes, que têm se juntado para fazer a crítica e também apontar caminhos para enfrentarmos o uso excessivo de agrotóxicos na produção de alimentos. Para pensar numa assistência técnica que seja diferenciada da tradicional, e esteja voltada para agricultura familiar na perspectiva agroecológica.
Vivemos nesse momento político a construção da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, que é algo fantástico. Se sair do papel teremos um instrumento para fazer muitas lutas. Então a agroecologia é centralíssima para nós nesse diálogo com a sociedade brasileira, de que nós temos um projeto e queremos vê-lo viabilizado, apoiado, e se contrapondo a outras ideologias e práticas cotidianas. Vamos continuar fazendo na prática o enfrentamento ao outro projeto predominante no Brasil, contra o uso excessivo de agrotóxicos, vamos reforçar e institucionalizar muita coisa. Ele se dará quando os agricultores não quiserem mais usar o agrotóxico, e tiverem condições para se livrar disso. Quando exercermos no dia a dia cada vez mais a nossa agricultura sem utilizar esses venenos.
O combate à violência contra a mulher tem sido muito discutido, e muitas afirmam que na prática a Lei Maria da Penha não é eficiente. Há alguma prioridade de luta nesse tema?
A violência contra as mulheres é algo que destrói vidas, e acaba com qualquer possibilidade delas evoluírem socialmente, nas suas organizações, na suas vidas. Não tem discussão sobre o quanto ela é maléfica sobre qualquer processo, mas nós trabalhadoras rurais a tratamos com uma perspectiva de que o estado brasileiro precisa assumir isso. Fazemos a nossa parte, mas o estado brasileiro esteve e continua ausente no campo brasileiro no que diz respeito a equipamentos e serviços de proteção às mulheres que são vítimas de violência. Não é possível discutir violência de forma isolada, porque fortalecimento da autonomia das mulheres, geração de renda, colabora para que elas saiam de ciclos de violência mas não são os únicos instrumentos. Quando uma mulher é violentada não tem onde fazer um registro, a realidade inclusive no Brasil é que para os municípios pequenos, ou seja, a grande maioria, não tem delegacia da mulher ou qualquer equipamento. Os gestores públicos não conseguem atender uma mulher violentada ou vítima de violência nos hospitais públicos. Para nós o tema da violência contra as mulheres é muito caro pela invisibilidade, e por não ter equipamentos públicos nos pequenos municípios. E a sensação é que a existência em si da Lei Maria da Penha é de uma força que faz com que as mulheres se agarrem nesse simbolismo da violência doméstica, mas a sua efetividade está muito longe de ser uma realidade.