Maíra Mathias com colaboração de Raquel Júnia, André Antunes e Viviane Tavares
A busca de um consenso possível entre 193 países sentados à mesa para negociar parece ter sido o principal objetivo da diplomacia brasileira, que liderou as rodadas finais que fecharam o documento oficial da Rio+20. Vinte anos depois da Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio 92), que deixou legados emblemáticos como a Agenda 21, o tom pouco ambicioso do texto atual corrobora a avaliação de que os líderes mundiais – sejam eles dirigentes de países desenvolvidos ou emergentes – não estão dispostos a abandonar suas agendas econômicas e agir.
A falta de confiança no processo de negociação da ONU, sinalizada por movimentos sociais e organizações da sociedade civil, fez com que, nas palavras do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, entre 13 e 22 de junho o Rio de Janeiro tenha vivido simultaneamente dias de Fórum Econômico e Fórum Social Mundial, com governos e empresários de um lado e os povos de outro. Enquanto no Riocentro, delegações do mundo todo se digladiavam em torno de pautas como o fim do lobby para a produção de combustíveis fósseis (rejeitada), no Aterro do Flamengo, onde se realizou a Cúpula dos Povos a partir do dia 15, ninguém parecia ter a menor dúvida quanto aos riscos representados pelas indústrias extrativas – mesmo porque muitas das comunidades presentes sentem na pele os prejuízos da exploração de gás, petróleo e carvão.
“A proposta da Cúpula dos Povos é construir uma agenda para que os governos escutem nossas vozes, porque eles estão reagindo baixo os interesses das grandes corporações”, explicou Iara Pietricovsky do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), uma das 36 redes nacionais que compuseram o comitê facilitador do evento. Desenhada para dar visibilidade às lutas e soluções das populações, a Cúpula recebeu aproximadamente 350 mil participantes de todas as partes do planeta. A diversidade era imensa: indígenas, quilombolas, afetados por usinas hidrelétricas e nucleares, por empreendimentos industriais ligados ao agronegócio, militantes feministas, pró-mobilidade urbana, ecossocialistas, cientistas compunham parte do público atraído pela programação variada, que acolheu 800 atividades autogestionadas propostas por centenas de entidades.
Para criar convergência entre as muitas bandeiras levantadas, a programação principal se organizou em torno de cinco eixos estratégicos – ‘Soberania alimentar’; ‘Energia e indústrias extrativas’; ‘Defesa dos bens comuns contra a mercantilização’; ‘Direitos, por justiça social e ambiental’; e ‘Trabalho: por outra economia e novos paradigmas’. A declaração final da Cúpula foi construída em plenárias e assembleias pautadas na avaliação das causas estruturais da crise, identificação das falsas soluções propostas pelos governos, apontamento de alternativas criadas pelos povos e proposição de campanhas e ações a serem desenvolvidas como passo seguinte ao encontro. “Os movimentos sociais precisam se unificar e se organizar em torno de pelo menos alguns pontos para que possam ter força política real. Nossa luta tem que primeiro fazer com que os governos regulem e submetam o pilar econômico a uma lógica baseada nos direitos humanos e em uma economia efetivamente verde, a partir dos povos, das experiências dos movimentos camponeses, indígenas e de todos aqueles que demonstraram que são capazes de manter com a natureza uma relação sustentável”, afirmou Iara.
Não à economia verde
Talvez o consenso mais importante da Cúpula tenha sido a rejeição da economia verde, identificada como principal falsa solução da Rio+20. Desde o início da construção do rascunho zero do documento aprovado no processo oficial, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) tenta promover o conceito como balizador das discussões. Mas o que é a economia verde? Na definição do Pnuma “uma economia verde é a que resulta em melhora do bem-estar humano e da equidade social, enquanto reduz significativamente riscos ambientais e escassez ecológica”. Difícil ser contra, não? No entanto, em um exame mais atento, o conceito de economia verde prevê que bens comuns como solo, água, ar, flora e fauna se transformem em capital natural. Ou seja, objetos de mercado. Por isso, na definição dos povos, em primeiro lugar economia verde é uma das expressões da atual fase financeira do capitalismo. Isso fica bastante claro em outro documento do Pnuma denominado ‘Declaração do capital natural’. Aberto à adesão de dirigentes de instituições financeiras, o texto “convoca o setor público e o setor privado a trabalhar juntos para criar as condições necessárias para manter e reforçar o capital natural como um ativo crucial, do ponto de vista econômico, ecológico e social”. Em outras palavras, para a economia verde funcionar os bens comuns precisam deixar de ser gratuitos. De acordo com os empresários e o Pnuma, a humanidade só valoriza o que precisa comprar. “Eles estão apostando nessa única saída como solução. A pergunta é: solução para quem? Para o sistema financeiro”, resumiu Darcy Frigo, da Plataforma Dhesca Brasil, na entrevista coletiva de encerramento da Cúpula.
Na gama de novos produtos para serem negociados, a economia verde inclui ‘serviços’ como a polinização das abelhas ou a própria biodiversidade de um território. “Agora que está em crise, o capitalismo tenta se inovar e precisa dos Estados, de políticas públicas e de leis que ofereçam novas fronteiras de acumulação. E essas fronteiras estão em grande parte no meio ambiente, ou seja, transformar todos os componentes da natureza em commodities”, explicou Lucia Ortiz, da ONG Amigos da Terra Brasil. “Os instrumentos do capitalismo verde ameaçam os modos de vida e de relação com o meio ambiente das populações com as expropriações de terras, seja para agricultura transgênica, seja a partir de instrumentos de venda de carbonoou de REDD [Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação], que já virou uma moeda e colocou as populações tradicionais no mundo dos contratos do mercado”, acrescentou.
Durante a Cúpula, as redes e movimentos sociais aprofundaram as críticas à economia verde. Para os participantes do evento, os novos mecanismos já estão em curso em todos os processos de expropriação dos bens comuns, alguns já antigos e bastante conhecidos, como o agronegócio e a privatização da água, e outros mais recentes como o mercado de carbono e o REDD – uma forma de negociação no mercado financeiro de gás carbônico acumulado em áreas que ainda não foram desmatadas. Um dos graves problemas desse mecanismo é que a lucratividade do REDD tem um crescimento diretamente proporcional à escalada do desmatamento, pois, quanto mais escasso, maior é a demanda pelo “produto”.
“Valorar financeiramente e jogar no mercado elementos intangíveis como as funções ecossistêmicas – compartimentadas hoje em um rol de ‘serviços’ ambientais – e recursos da biodiversidade historicamente utilizados e mantidos por populações tradicionais e pequenos agricultores, cria um choque com o direito humano inalienável e universal ao meio ambiente”, afirma o guia Lado B da Economia Verde, produzido pela Fundação Heinrich Böll e pelo Repórter Brasil. “A premissa de que a proteção do meio ambiente só ocorrerá se for lucrativa, ou que só podemos preservar pagando por isso, enfraquece o Estado de Direito e o cumprimento da lei, assim como deixa de fora aspectos científicos e biológicos inerentes à saúde do planeta, sociais, culturais e espirituais inerentes à sobrevivência das populações” completa.
No entanto, a consagração da economia verde como protagonista da Rio+20 não aconteceu conforme o planejado graças à resistência do G-77 – bloco composto atualmente por 131 países em desenvolvimento – que conseguiu emplacar algumas condicionantes, como a que prevê que a economia verde não deve ser contra os direitos dos povos. Na opinião de Jean Pierre Leroy, consultor da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), o resultado poderia ter sido pior. “A conferência não consagrou a economia verde como a questão central. É claro que o setor privado avança nessa direção, colocando água, ar, solo, fauna e flora como objetos de financeirização, mas eu diria que, no embate político, se analisamos as declarações que saíram na imprensa e o que rolou na Cúpula, percebemos que não foi tudo ao redor da economia verde e que um projeto político de sociedade para enfrentar a questão socioambiental continua a ser central”, afirmou. Já para Silvia Ribeiro, da organização não governamental ETC Group, mesmo esvaziado, o documento é um sinal aberto para a economia verde. “A verdade é que o documento cria um marco muito geral que pode e vai ser interpretado pelas indústrias, pelas grandes transnacionais e pelas instituições financeiras internacionais, como o Banco Mundial e os bancos regionais de desenvolvimento, como apoio para essas formas de economia verde”.
Autor de livros como ‘O Ecologismo dos Pobres’, o economista catalão Joan Martinez Alier esteve presente na Cúpula dos Povos, onde avaliou que a promoção da economia verde serve para mascarar a falta de resultados dos processos de deliberação da ONU lançados pela Rio 92, como os encontros anuais que negociam a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC, na sigla em inglês) e o Protocolo de Kyoto. “Há muitos motivos para estarmos indignados com todo o ciclo das Nações Unidas. Faz vinte anos que se fala em crescimento sustentável, uma contradição, pois desenvolvimento não é sustentável. Agora falam em economia verde, daqui a vinte anos vão falar em desenvolvimento verde, em quarenta, de economia sustentável. Sempre vão conseguir inventar mais um slogan vazio. É preciso estar indignado pela falta de resultados em Copenhagen [2009], em Cancun [2010], em Durban [2011] e também aqui no Rio. É óbvio que os governos falam, mas não decidem nada real”, criticou.
Negociação conturbada
Não foram poucas as críticas sobre a falta de concretude da Rio+20. A certa altura, o próprio secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-Moon, criticou o documento, que não conseguiu avançar em pontos-chave. Um deles era a definição dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) adiada para 2015, quando vence o prazo para que os 189 países signatários alcancem os oito Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), que conta com metas como a redução da pobreza e a universalização do ensino básico. Outra polêmica se deu em torno da tentativa de esvaziamento de um dos Princípios do Rio, lista de 27 itens aprovada durante a conferência de 1992 e que, desde então, guiam a atuação internacional dos países nos temas ambientais. Estados Unidos, Canadá, Japão e países europeus queriam retirar do documento final da Rio+20 qualquer menção ao princípio das “responsabilidades comuns, porém diferenciadas”, que prevê que países ricos invistam mais em políticas de transição para o desenvolvimento sustentável por terem contribuído historicamente com a poluição do planeta graças a seus modelos de produção e consumo. A atuação do G-77, em particular da China, conseguiu reverter a investida. No entanto, em termos práticos, o fundo de US$ 30 bilhões para projetos de desenvolvimento sustentável que deveria ser financiado pelos países ricos não vingou (a definição de formas de financiamento fica de molho até 2014). Enquanto isso, na reunião do G-20 que acontecia no México no dia 18 de junho, o Fundo Monetário Internacional (FMI) arrecadava US$ 456 bilhões dos países-membro.
Outro ponto controverso durante a negociação do documento foi a retirada do termo “direitos reprodutivos” na parte referente aos direitos das mulheres. Para alcançar o propalado multilateralismo, nenhum país poderia vetar nada. O termo foi suprimido do texto a pedido do Vaticano. Para Célia Aldridge, do Secretariado Internacional da Marcha Mundial das Mulheres, o fato é grave, embora não seja exceção no universo das conferências. “As mulheres aparecem de uma forma diluída, não são as nossas lutas feministas que estão ali. O fato é que o Vaticano tem se posicionado contra os direitos das mulheres de forma permanente, a autonomia sobre nossos corpos e sexualidade, sobre nosso trabalho e vidas, reforçando permanentemente o modelo de família que coloca a mulher em casa cuidando dos filhos, a serviço do capital e do patriarcado”.
Segundo Iara Pietricovsky a supressão dos direitos reprodutivos sinaliza um retrocesso grave no interior do sistema ONU. “Durante 20 anos viemos construindo um marco dos direitos humanos por meio do que chamamos de ciclo social das Nações Unidas, que começa em 1992 e vai até a conferência de Durban. Agora nos confrontamos com um documento que desrespeita o que já foi assinado pelos países”. Para ela, 1992 foi um marco por ter conseguido alçar a afirmação de direitos e do conceito de sustentabilidade como pilares da agenda mundial. “O pilar econômico deveria estar submetido à lógica de uma justiça social e ambiental. O mundo promoveu um marco, mas não implementou”.
Há vinte anos
O que tornou possível que a conferência em 1992 tenha gerado discussões mais avançadas que a Rio+20? Para Jean Pierre Leroy, que co-organizou o relatório do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para a Rio 92, vinte anos atrás o mundo apenas começava a ter consciência da importância das questões ambientais. “Havia poucos compromissos anteriores a essa conferência, o que fez com que os governos estivessem mais livres para avançar”. A Agenda 21 é o título de um dos principais documentos negociados então. Com seus 40 capítulos e mais de 800 páginas, o documento é um amplo plano de ação que, entretanto, como lembra Leroy, não tem força legal. Para ele, o fato de a Agenda não engajar compromissos deu margem a muitos avanços que não seriam possíveis caso os governos tivessem efetivamente que se comprometer com o seu conteúdo. “A Agenda 21 custou quase dois anos para ser preparada, enquanto que o documento atual foi discutido em poucos meses e com o ônus de os governos terem percebido os impasses, os problemas, os bloqueios e não quererem se comprometer”.
Uma das principais críticas do comitê organizador da Cúpula dos Povos foi a baixa permeabilidade das Nações Unidas à efetiva participação social. Na conferência, o que poderia ter sido um avanço – a realização dos Diálogos para o Desenvolvimento Sustentável com a sociedade civil – se transformou em mais do mesmo. “O governo brasileiro organizou o evento e convidou representantes de vários lugares do mundo para o debate dizendo que levaria sugestões desse espaço para a conferência oficial. Na verdade, tudo foi extremamente controlado, desde as pessoas que falariam aos convidados da plateia, o que já mostrava que as coisas estavam na mesa antes do começo da conferência. Não só a sociedade civil sentiu isso, mas também muitas delegações de países pequenos. Não diria que é totalmente um jogo de cartas marcadas, mas um debate em que predomina os países principais, os grandes blocos”, descreve Leroy. Ele lembra que em 1992 havia mais confluência entre a conferência oficial e o Fórum Global, evento equivalente à Cúpula dos Povos, porque em muitos países a questão ambiental era portada por entidades da sociedade, enquanto agora são os aparelhos burocráticos que assumem essa agenda.
O que continua igual é a compreensão das Nações Unidas de que as principais soluções para os problemas ambientais e sociais passam pelo eixo econômico. “Os governos não se preocupam com a justiça ambiental, que para nós é uma questão central. Impactos ao meio ambiente afetam certas populações mais do que outras. Isso faz com que haja um afastamento de uma parte da sociedade civil dessas conferências que colocam na frente o mercado”, lamenta Jean Pierre. Em 1992, o contexto econômico era de avanço do neoliberalismo e internacionalização dos mercados, o que, segundo ele, impactou também a Agenda 21, que diz em um capítulo que o desenvolvimento sustentável será alcançado com a abertura das economias. No entanto, Leroy acredita que desde então houve uma escalada da ‘economização’ da ONU: “Já havia elementos na Rio 92 que permitiam dizer que a economia era o eixo central, mas na Rio+20 isso dá um salto, que, ao meu ver, já estava sendo preparado faz tempo. Todas as conferências sobre clima ressaltam a importância do mercado para resolver a questão climática. Além disso, os governos, sempre querendo diminuir seus gastos, fizeram com que facilmente o consenso fosse a saída pelo mercado e aí então se criou esse nome ‘economia verde’”.
Contra o capitalismo financeiro
“Creio que o desafio sinalizado pela Cúpula é sermos capazes de desenvolver uma campanha que ataque a coluna vertebral da economia verde, que é o capital financeiro internacional especulativo”, afirma Pablo Sólon, ex-embaixador da Bolívia nas Nações Unidas, atualmente diretor-executivo da ONG asiática Focus on the Global South. Para ele, o maior poder transnacional que existe hoje é o capital financeiro: os grandes bancos, as entidades que manejam fundos de investimento, as seguradoras e resseguradoras. “Sem uma campanha dirigida a acabar com o poder deste sistema financeiro, não conseguiremos conquistar um outro mundo. Para fazê-lo, temos que visibilizar essas entidades, pois as pessoas sabem o que uma transnacional como a Monsanto faz, identificam que seu negócio tem a ver com sementes, mas e o JP Morgan [banco de investimentos norte-americano]? Quem sabe o que é? Só as bolsas sabem e, no entanto, trata-se de um dos maiores poderes econômicos e financeiros do mundo”.
Sólon defende que a solução passa por pelo menos dois níveis de governança. No internacional, ele sugere o estabelecimento pela ONU de uma regulação mais rigorosa sobre o capital especulativo e o fim de paraísos fiscais. No entanto, denuncia, o lobby privado nas Nações Unidas está cada vez mais escancarado. “Quando trabalhava como embaixador da Bolívia, a maioria das pessoas presentes em reuniões sobre os mercados de carbono não eram de fato membros da diplomacia dos países, mas consultores de empresas que se ofereciam para atuar como delegados. Eles falavam pelos países, mas quando estendiam seus cartões, lá estavam os logotipos das empresas consultoras ou que comercializavam bônus de carbono”, lembra, citando que a prática era especialmente comum em nações africanas e insulares. No nível nacional, a população deve pressionar governos e parlamentos para que estes estabeleçam proibições claras ao sistema financeiro, como leis contrárias aos instrumentos financeiros derivativos e medidas que regulem a atuação dos bancos que, na opinião do ex-embaixador, devem se limitar a funções básicas. “Um banco foi feito para guardar dinheiro e dar crédito, e não para fazer fortunas especulando com o dinheiro que você deposita. No entanto, hoje essas instituições lucram, por exemplo, fazendo transações de um país para outro somente com o objetivo de ganhar à custa do câmbio das moedas”.
Outro exemplo de negócio bancário que extrapolaria as funções básicas prejudicando os povos seria a especulação no mercado de futuros, onde são negociadas safras de alimentos. Segundo explica Sólon, a alta nos preços de produtos agrícolas que vem gerando a chamada crise alimentar (a ONU registrou que em 2011 existiam no mundo mais de um bilhão de famintos) é resultado da migração de capitais especulativos que ficaram órfãos com o estouro da bolha imobiliária em 2008 nos Estados Unidos. “Hoje, um investidor não compra a safra de arroz deste ano, mas sim a produção que só vai existir em três anos. Como há aí um fator de risco, o preço da tonelada do arroz que seria de US$ 10 passa a ser de US$ 15 porque para estar seguro, o investidor contrata uma seguradora. Essa firma, no entanto, também não quer correr riscos e contrata uma resseguradora e assim indefinidamente. Então, a tonelada do arroz que antes valia US$ 10, por meio da especulação, acaba valendo US$ 200, o mesmo processo que fez com que as casas que valiam US$ 200 mil fossem negociadas por US$ 1 milhão”. Pablo sinaliza que esse processo faz com que os valores imaginários das bolsas superem em muito os valores atribuídos à riqueza dos países. “Hoje, o Produto Interno Bruto (PIB) mundial é de 63 trilhões de dólares, mas estão se comercializando derivativos na ordem de 1.500 trilhões, um valor 250 vezes maior. Como isso pode ser possível? Vivemos em uma economia financeira de ficção”, definiu.
Contra as empresas transnacionais
A declaração final da Cúpula deixou claro: lutar contra as grandes corporações é um eixo que une todos os movimentos sociais e organizações da sociedade civil. Ainda durante o encontro, mais de cem organizações lançaram uma campanha para por fim à impunidade das empresas transnacionais e seus crimes ambientais e econômicos. “Queremos que existam leis vinculantes no nível do direito internacional que possam julgar e sancionar as empresas, mas também precisamos de mais unidade na ação, apoio e solidariedade entre as diferentes campanhas. Por isso, acreditamos que lançar a campanha aqui pode ser útil para conseguir objetivos a nível internacional ou setorial”, detalhou Tom Kuchars, da ONG espanhola Ecologistas en Acción, também integrante de um grupo de trabalho contra a financeirização da economia e da natureza no âmbito da Rede Internacional por Justiça Climática.
Kuchars explicou que todos os tipos de empresas que jogam com o capital financeiro querem ampliar seus lucros com especulação usando os bens comuns. “Isso já aconteceu com os mercados de carbono, quando especularam com a emissão de dióxido de carbono. As empresas ganharam muito dinheiro, mas, de concreto, nada fizeram contra as mudanças climáticas. É um exemplo que demonstra que a financeirização da natureza traz grandes perigos”. De acordo com ele, o fracasso da Rio+20 e da Conferência sobre Mudança Climática das Nações Unidas de Durban pode ser creditado às corporações, que bloqueiam as decisões contrárias aos seus interesses. “O poder das transnacionais se mede mano a mano com o poder dos Estados nacionais, que também não nos representam porque não querem mudar a situação, só lhes interessa o poder em matéria de status quo, de geração e manutenção de benefícios políticos e particulares”.
Mas que crimes essas empresas cometem? De acordo com Tom, violação dos direitos trabalhistas, do direito à alimentação, do direito à água e do direito à saúde são alguns deles. “Se vamos para o exemplo do setor de mineração, isso significa perda da biodiversidade, contaminação dos rios, despejamento forçado das comunidades locais, emissão de gases de efeito estufa, significa processos industriais altamente contaminantes.Estamos vendo isso na região onde se instalou a TKCSA no Rio de Janeiro, onde milhares de famílias estão sendo contaminadas pelo ferro gusa”, observou. Empresas de energia que atuam na extração de petróleo, gás e carvão, explicou Kuchars, são as grandes responsáveis pela mudança no clima, cujos efeitos, como inundações, secas e perda dos solos férteis, produzem mais de 350 mil mortes por ano. “Se temos em conta todos esses impactos ambientais a médio e longo prazo, realmente são crimes de lesa humanidade porque cometidos sistematicamente. As empresas sabem das consequências de seus atos, mesmo assim, seguem praticando as mesmas políticas extrativistas, industriais, contaminantes. Os governos reunidos na Rio+20 também podem ser acusados de cometer crimes porque sabem quais são as medidas necessárias para o enfrentamento da pobreza, da fome, da mudança climática, mas não agem”.
Por uma agricultura familiar agroecológica
A agricultura industrial significa um ecossuicídio porque em seu manejo produz os gases que afetam o seu próprio funcionamento. A afirmação é de Miguel Altieri, da Sociedade Latinoamericana de Agroecologia. O pesquisador é uma das principais referências mundiais no tema e esteve presente no seminário internacional ‘Tempo de agir por mudanças radicais – Agricultura familiar camponesa e agroecologia como alternativa à crise do sistema agroalimentar industrial’ que aconteceu durante a Cúpula. Para Altieri, são os sistemas tradicionais de agricultura que oferecem hoje as soluções para a crise ambiental, a exemplo dos cultivos que camponeses fazem em áreas que em parte do ano estão inundadas, nos quais os peixes cumprem importante função no controle de pragas ou então das lavouras cercadas por bosques e florestas cultivadas por pequenos agricultores em várias partes do mundo que contribuem para a manutenção do equilíbrio climático. “Esses sistemas foram capazes de resistir e enfrentar mudanças climáticas, é daí que a agroecologia precisa emergir”, sentenciou.
Para Jean Marc van der Weid, coordenador do Programa de Políticas Públicas da Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (AS-PTA), esse tipo de discussão deveria ter ganhado espaço na conferência oficial. “Se discutíssemos só a agricultura e seus efeitos sobre o desenvolvimento de energia, aquecimento global e destruição de solos já teria sido um grande avanço. A agricultura está no coração de todas as relações do modelo de desenvolvimento com as questões ambientais”, afirmou. De acordo com ele, o tema foi invisibilizado na Rio+20. “O grupo de trabalho que deveria tratar da agricultura sustentável se reuniu pouco e não tem diagnóstico concreto. Comparando com as decisões tomadas em 1992, há poucas propostas. Além disso, quase nada foi feito para enfrentar problemas sérios como a perda de biodiversidade na agricultura detectada há vinte anos”.
Segundo Jean Marc, a agricultura propriamente dita, somada àquilo que é seu impacto direto, como o desmatamento, e também todo o processo que faz a comida chegar à mesa do consumidor, representa mais da metade das emissões de gases de efeito estufa. É um modelo dependente de petróleo, gás, carvão, fósforo e potássio, recursos em processo de esgotamento. “Por outro lado, temos o efeito sobre a poluição ambiental, que é enorme, por ser um sistema que usa uma quantidade gigantesca de agrotóxicos com efeitos colaterais como contaminação de água, solos e destruição de espécies, como insetos polinizadores, o que leva um desequilíbrio na reprodução natural das plantas”. O efeito é maciço e vai ao ponto de produzir a multiplicação de algas na foz dos rios graças à deriva de resíduos de adubo químico nos cursos d’água. “Isso gera um efeito de sufocação, de retirada do oxigênio da água que mata tudo o que existe em volta. Por exemplo, 85% das espécies que sobreviviam em 20 quilômetros quadrados na foz do rio Mississipi [EUA] desapareceram”. E, finalmente, há a contaminação dos agricultores, que manipulam uma série de venenos, e dos consumidores. “Particularmente em um país como o Brasil onde a vigilância sanitária é muito limitada, está em curso um processo de contaminação maciço e o dossiê da Abrasco mostra isso. A pessoa que come tomate com agrotóxicos todo dia não vai passar mal na hora, mas em cinco anos. Os venenos têm efeito cumulativo sobre a saúde. Esse processo já é considerado nos Estados Unidos um dos maiores fatores da chamada ‘epidemia de câncer’, que vem crescendo nos últimos quarenta anos”, alertou.
A solução dos povos, como descreveu Altieri, está na agroecologia desenvolvida no modelo de agricultura familiar. De acordo com a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO, na sigla em inglês), se o mundo adotasse esse modelo haveria disponibilidade de calorias suficientes para alimentar não só toda a população planetária como os nove bilhões de habitantes que existirão em 2050. “Além disso, todos os efeitos colaterais perversos do sistema convencional, como envenenamento, destruição de solos e uso massivo de energia são prevenidos. A agroecologia é uma forma de produção baseada fundamentalmente no manejo ecológico dos recursos naturais, envolve, portanto, um mínimo de insumos externos e um máximo de reciclagem de nutrientes, matéria orgânica, o uso da biodiversidade natural das próprias propriedades como elemento de controle de patógenos e inimigos da produção”, definiu Jean Marc. Ainda de acordo com ele, os sistemas agroecológicos precisam de muitos trabalhadores ligados umbilicalmente ao processo e, por isso, funciona melhor quando são eles os proprietários da terra. “Daí a relação com a agricultura familiar: a família tem interesse na manutenção daquele sistema então qualifica a sua intervenção”.
Muitas lutas
“Lutar contra Belo Monte é…. [choro] é a vida, a vida da minha família que vem da pesca, da roça. Meus pais e avós me deixaram com terra, com floresta, com rio, e a barragem não vai deixar herança para os outros, nem de água, nem de peixes. As espécies que serão destruídas só existem ali e não queremos que as próximas gerações as conheçam apenas de história, queremos que elas sobrevivam desse rio e a barragem anula as próximas gerações. Então, é lutar por uma casa que é de todos. A nossa Amazônia é água, então imagina se barrarem todos esses rios! São mais de 16 barragens programadas, como vai ficar? “. A fala emocionada da paraense Ana Laíde Barbosa, de uma família de pescadores da região de Belém, mostra o tom da resistência contra a Usina Hidrelétrica de Belo Monte, uma das lutas mais lembradas durante a Cúpula dos Povos. O protesto contra o empreendimento ecoou em vários momentos nas vozes do grande contingente de indígenas presentes no encontro – algumas lideranças conhecidas e respeitadas, como o cacique Raoni–, além de ribeirinhos, pescadores e diversos movimentos envolvidos com a causa. Outros megaprojetos hidrelétricos, como as usinas de Jirau e Santo Antônio, também foram duramente criticados, dando margem a uma aliança que ultrapassou fronteiras nacionais, reunindo afetados por projetos do mesmo tipo na Amazônia peruana, Estados Unidos e Mesopotâmia.
A Cúpula teve como slogan ‘Venha reinventar o mundo!’ e durante os oito dias de evento os povos mostraram que têm propostas para a crise mundial. Muitas dessas soluções já são postas em prática, como a agroecologia, o uso de tecnologias sociais que possibilitam a convivência com biomas como o semiárido, a produção de energia descentralizada e menos impactante, além de inúmeras experiências de economia solidária no campo e na cidade. A carta final da Cúpula aponta eixos de luta gerais como a oposição ao pagamento de dívidas econômicas injustas e a realização de auditorias populares sobre as mesmas, a exigência de cumprimento da convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que exige a consulta e consentimento de povos indígenas e tradicionais sobre quaisquer empreendimentos e assuntos que possam afetá-los, além da luta pela garantia do direito dos povos aos territórios urbanos e rurais, a defesa da democratização da comunicação, a rejeição da violência contra as mulheres, gays, lésbicas, bissexuais, transexuais e transgêneros. O documento apontou ainda uma proposta de construção do dia mundial de greve.
“A confluência de entidades, movimentos e pessoas que querem um modelo de desenvolvimento diferente é a principal conquista. Agora, é levar para nossas bases as propostas e construir sua materialização. Nós, da agricultura, percebemos que nosso foco é lutar contra os agrotóxicos, porque esses venenos são formas predadoras do atual modelo. Imagino que para os companheiros que moram em áreas indígenas ou locais que vêm sendo objeto de especulação das mineradoras, as principais formas de lutar contra o modelo é lutar contra as empresas. Espero que o povo da cidade também lute contra esse modelo estúpido de transporte individual baseado no automóvel que está poluindo e transformando o espaço urbano em um lugar impossível de se viver. O principal é que daqui sai outro patamar de consciência para as lutas”, avaliou João Pedro Stédile, da Coordenação Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), no final do evento. “Este não é o ponto final de um processo, aqui começa a luta. Estamos assistindo à ascensão de convergências em resposta ao processo de economia verde. Daqui para frente, os quilombolas não estarão sozinhos protestando no Congresso Nacional. Junto deles, estarão os indígenas, os camponeses, as mulheres, as organizações socioambientais”, resumiu Paulino Montejo, da Articulação dos Povos Indígena do Brasil (Apib), na coletiva de imprensa de balanço da Cúpula dos Povos.
(*) Reportagem publicada originalmente na página da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz)