Assim como a agroecologia tem crescido na prática dos agricultores em todo o Brasil, a produção científica vem se expandindo nas universidades nos últimos anos. Mas ainda existem muitas amarras na Acadêmia, apesar dos avanços. Irene Maria Cardoso, professora do Departamento de Solos da Universidade Federal de Viçosa (UFV-MG), e membro da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA), conta para ANA o que está em discussão na construção dos cursos de agroecologia no Brasil.
Na entrevista ela destaca a importância dos editais de pesquisa, o interesse da juventude pelo tema e aponta alguns conceitos para agroecologia. Uma das questões fundamentais para o avanço da agricultura familiar, segundo a acadêmica, é a reforma agrária para aumentar a produção local dos trabalhadores do campo, que já são responsáveis pela maior parte da comida dos/as brasileiros/as.
Você disse que os cursos de agroecologia estão proliferando no Brasil, qual é o cenário em relação a isso?
De certo tempo para cá muitos cursos técnicos, tecnólogos e cursos superiores e de mestrado em agroecologia têm sido criados. Muitos Institutos Federais de Educação e Tecnologia (IFES) têm criado esses cursos. Alguns cursos de graduação também têm sido criados, como o da Universidade Federal de São Carlos e também de mestrado, como o da Universidade Federal de Viçosa (UFV). Isso é bom porque significa que tem pessoas se formando em agroecologia, mas também traz problemas. Um deles é o problema de reconhecimento desses profissionais pelo CREA [Conselho Regional de Engenharia e Agronomia], por exemplo. E o outro é o próprio problema de formação: que formação agroecológica, qual é o diferencial desses profissionais? Então eu acho que isso é tema para discussão, e por isso a ABA [Associação Brasileira de Agroecologia] está chamando o I Seminário de Educação em Agroecologia para debater essa problemática.
Existe um padrão que estabelece as diretrizes do conteúdo dos cursos?
Não tem, cada um está criando o seu. É claro que as informações circulam, mas não tem um formato. E tem algumas pessoas, inclusive, que pedem esse formato. Um dos objetivos desse seminário é discutir o que seria o conteúdo básico, o que deveria ter nesse currículo mínimo de agroecologia. Eu particularmente acho que isso é muito pouco, porque a gente vai cair no mesmo problema de formação do agrônomo. Não adianta você ter uma proposta de um currículo com uma “grade” curricular, disciplinar. É preciso discutir uma proposta metodológica diferente. E eu não sei se temos hoje condições concretas para discutir uma formação diferente do profissional de agroecologia, embora isso tenha que ser buscado. Sabemos que a nossa estrutura curricular é muito pesada e amarrada, então é muito difícil só porque foi criado um curso de agroecologia romper de um dia para o outro com isso. Acho que para o curso de agroecologia, assim como para os demais, é preciso construir e dar visibilidade o que ocorre para além das salas de aula. Concretamente buscar a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Daí, os projetos com os movimentos, as iniciativas dos estudantes, dentre outras, precisam ser potencializadas. Precisamos apostar nessas iniciativas que estão em curso no Brasil, e romper com a grade e o estudo disciplinar. Mas isso exige tempo e coragem e algumas instituições precisam tomar essa iniciativa.
Como está a juventude nessa questão da agroecologia, tem muito estudante se interessando?
A juventude está se interessando muito pela discussão da agroecologia. É claro que isso ainda não é hegemônico dentro das universidades, mas tem um grupo grande de estudantes que se interessa e constrói agroecologia de fato. Na minha universidade (UFV) a gente tem três grupos que estão construindo agroecologia, tem seus eventos, suas práticas. Tem um grupo de estudantes, junto com alguns professores/as, inclusive, que traz uma proposta que vai além da questão técnica ou científica da agroecologia. É um entendimento da agroecologia enquanto movimento, ciência e prática, e isso está muito presente dentro das universidades.
O que é a Associação Brasileira de Agroecologia (ABA)?
A ABA é uma entidade que está dentro do campo da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), mas é uma associação científica. Ela ajuda a fortalecer esse braço científico da agroecologia dentro da ANA, se a gente entender a agroecologia como ciência, movimento e prática. Um dos seus objetivos é realizar o Congresso Brasileiro de Agroecologia, que é oportunizar o encontro de quem está fazendo as pesquisas em agroecologia, quem está produzindo o conhecimento dentro do campo científico. Por isso a ABA está dentro da ANA, porque queremos fazer isso em conjunto com os movimentos sociais, com as ONGs que constroem a agroecologia. Para, inclusive, construir uma ciência diferente, não essa que está aí que entende o conhecimento científico como o mais importante e único válido.
É preciso resgatar e valorizar o conhecimento dos/as agricultores/as, afinal são eles que estão aí por séculos, manejando os agroecossistemas e aprendendo os segredos da natureza! Este conhecimento, claro, se entrelaçado com o conhecimento científico pode produzir um resultado melhor rumo a uma agricultura mais amiga da natureza.
A ABA tem data de origem? É uma articulação Nacional?
Ela foi construída em 2004, no II Congresso Brasileiro de Agroecologia, no Rio Grande do Sul, que apontou a necessidade de criar a associação. Ela tem uma diretoria com representantes regionais, e não é só de pesquisador e acadêmicos. Tanto é que um dos dois vice-presidentes é o Paulo Petersen, da AS-PTA, uma ONG que trabalha com a agroecologia. Então, não necessariamente tem que ser só pessoas do campo científico. O Congresso Brasileiro de Agroecologia é aberto para a sociedade civil, aos agricultores e agricultoras, não é só um congresso de cientistas e acadêmicos.
Normalmente os estados preparam os seus encontros, como no Mato Grosso do Sul e Ceará, que já organizaram vários encontros. E tem as reuniões da diretoria, a gente acabou de ter uma reunião agora em Porto Alegre. Existe, ainda, os Grupos de Trabalho (GTs), como os de agroecologia, agrotóxicos e gênero, que têm suas dinâmicas e também promovem encontros. Este ano o GT de Educação da ABA vai organizar seu primeiro seminário de agroeocologia.
Como se dá a disputa acadêmica e técnica na construção das políticas públicas?
A disputa não é muito fácil, do governo Lula para cá a gente começou a ter editais específicos que permitiram algumas pesquisas científica envolvendo a agroecologia. Principalmente através dos editais do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) houve um aporte maior de recursos, em especial para a pesquisa em interface com a extensão. A gente espera que os editais continuem, pois estes editais permitiram vários avanços, registrados em avaliações realizadas pelo próprio MDA. O Ministério da Educação (MEC), através da Secretaria de Educação Superior (Sesu), também tem possibilitado a realização de Projetos de Extensão Universitária (ProExt), em agroecologia.
Em função desses editais temos conseguido produzir um pouco mais de trabalho acadêmico em agroecológica, mas antes a gente tinha a própria dinâmica dos cursos de pós-graduação que permitiam construir dissertações de mestrado, teses de doutorado, com enfoque agroecológico e com financiamento da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). Mas, sem dúvidas, os editais mais voltados para a agroecologia, a partir do governo Lula permitiram um avanço maior .
E esses materiais são aproveitados, como isso se reflete nas políticas públicas?
Eu acho que não é só o resultado científico em si que é aproveitado,porque todo o trabalho em agroecologia construído em parceria com os movimentos sociasi, com as organizações de alguma forma rebate nas políticas públicas. Todas as nossas pesquisas de sistemas agroflorestais, por exemplo, de uma forma ou de outra auxiliaram na construção das normativas que permitem o uso de sistemas agroflorestais em Áreas de Proteção Permanente (APP). Mas eu acho que está longe de ser do jeito que a gente gostaria, até porque não temos um volume tão grande de pesquisa. Não temos também a pretensão de sozinhos (só os acadêmicos) influenciar nas políticas públicas. A gente faz isso em parceria com os movimentos, com as organizações. Eu sei que as nossas pesquisas influenciam, por exemplo, junto com o Centro de Tecnologias Alternativas (CTA) nas políticas públicas. E auxilia no próprio repensar dessa pesquisa também.
Existe no meio científico consenso em torno da agroecologia, no ponto de vista conceitual? O que é a agroecologia?
Estamos longe de consenso conceitual em torno da agroecologia. Não sei se é possível e se é necessário conceituá-la, mas a definição mais comum, é a definição dada por [Miguel] Altieri: a ciência que estuda, desenha e maneja os agroecossistemas. Claro que aí precisamos também de definir o que são os agroecossistemas e suas interfaces. Atualmente Gliessman tem ampliado este conceito e considerado agroecologia como a ciência que estuda o sistema de produção de alimentos como um todo. Este definido como a rede global de produção, distribuição e consumo. Mas eu particularmente considero que a produção de fibras e energia de forma sustentável também devem ser objeto de estudo da agroecologia. Além disto, a interface dos agroecossistemas com os ecossistemas naturais também é objeto de estudo da agroecologia.
Quais são os temas mais discutidos que envolvem a agroecologia hoje no Brasil?
Eu considero que há algumas grandes questões que sempre aparecem, entre elas: A agroecologia pode sustentar o mundo? Atualmente temos vários estudos, entre eles o do IAASTD e de Olivier de Schutter, mostrando que o potencial da agroecologia pode sustentar o mundo e é a única forma de promover o desenvolvimento sustentável, desde que haja, entre outras coisas, políticas públicas adequadas.
A agroecologia é ciência, movimento ou prática? Para mim, é tudo junto, como afirma Wezel et al, (2009 – Agron. Sustain. Dev.). Aagroecologia é só para a agricultura familiar? No meu entender a agroecologia é para quem quiser, mas precisamos concordar que ela é mais adequada à estrutura da agricultura familiar. A agricultura familiar é responsável por 70% dos nossos alimentos. Então, por que precisamos nos preocupar com a outra agricultura? Porque ela ocupa mais de 80% da área agricultável. Então, precisamos nos perguntar: Qual o limite máximo da propriedade queremos no Brasil? E quando iremos fazer a reforma agrária?
O que é melhor, intensificar (com insumos externos, transgênicos e etc) as áreas agrícolas e liberar áreas para as florestas, ou intensificar ecologicamente o manejo e integrar a agricultura às áreas naturais? Perfecto et al. 2009 (Livro: Nature´s Matrix) argumenta que a primeira possibilidade é um mito e que a segunda é a única possibilidade.