Raquel Júnia – Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). Foto: Viviane Tavares – EPSJV/Fiocruz.
“A cúpula possibilitou o aprofundamento de lutas conjuntas. Daqui para frente os quilombolas não estarão sozinhos em Brasília, mas estarão com eles os indígenas, os camponeses, as mulheres, as organizações sócio-ambientais. A Cúpula não é o ponto final de um processo, aqui está apenas começando a luta”. A declaração de Paulino Montejo, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), na coletiva de imprensa do último dia da Cúpula resume o sentimento geral do grupo articulador da sociedade civil com o fim do evento – foi possível estabelecer nos oito dias as convergências necessárias em resposta à conjuntura de financeirização da natureza encabeçada pela ONU no processo oficial da Rio+20.
A Cúpula foi realizada entre os dias 15 e 22 de junho no Rio de Janeiro e teve como pontos chaves as cinco plenários simultâneas com os temas Soberania Alimentar; Energia e indústrias extrativas; Defesa dos bens comuns contra a mercantilização; Direitos, por justiça social e ambiental; Trabalho: por outra economia e novos paradigmas, cujas discussões e propostas foram levadas para três assembleias. Plenárias e assembleias foram consideradas pelos organizadores os espaços centrais da metodologia desenhada para a Cúpula. Em janeiro, durante o Fórum Social Temático, realizado em Porto Alegre, alguns dos organizadores do evento estimavam que a participação pudesse girar em torno de 40 mil pessoas, calculo feito a partir das demandas de acampamento já apresentada pelos movimentos sociais durante os dias da Cúpula, entretanto, com o fim do evento, o balanço estima em 350 mil o número de participantes.
As numerosas e diversificadas marchas e manifestações também foram ressaltadas como importantes momentos de convergência entre os participantes, como a marcha das mulheres, dos indígenas em frente ao BNDES, contra as corporações em frente a empresa Vale, em defesa da comunidade ameaçada de remoção Vila Autódromo , por uma alimentação livre de agrotóxicos e por outro modelo de produção na agricultura brasileira, da Via Campesina , e a própria marcha de abertura , no dia 20, que reuniu cerca de 80 mil pessoas na Avenida Rio Branco. O evento contou ainda com mais de 800 atividades autogestionadas. “A Cúpula cumpriu seu papel importante e realizou aquilo que propôs, um contraponto à economia verde. Nós nos recusamos a fazer diálogo com o processo oficial porque sabíamos que a negociação não avançaria, como se confirmou hoje com o fim da Rio +20. Ficou clara a captura corporativa da ONU e rebaixamento de direitos no documento final”, destacou na coletiva de imprensa Darci Frigo, da Plataforma Dhesca Brasil, uma das 36 redes que compuseram o grupo de articulação da sociedade civil para a Rio+20, responsável pela construção da Cúpula dos Povos. De acordo com ele, o secretário-geral da ONU respondeu de forma genérica e pouco contundente a delegação da Cúpula das Povos que foi até ao Riocentro a convite do próprio secretário apresentar as discussões e propostas tiradas durante a Cúpula.
A carta final do evento, lida na assembleia do dia 22 de junho, reforça a incredulidade dos participantes nos processos decisórios da ONU. “As instituições financeiras multilaterais, as coalizões a serviço do sistema financeiro, como o G8/G20, a captura corporativa da ONU e a maioria dos governos demonstraram irresponsabilidade com o futuro da humanidade e do planeta e promoveram os interesses das corporações na conferência oficial”, diz a carta. “Em contraste a isso, a vitalidade e a força das mobilizações e dos debates na Cúpula dos Povos fortaleceram a nossa convicção que só o povo organizado e mobilizado pode libertar o mundo do controle das corporações e do capital financeiro”, continua o documento.
Ivo Lesbaupin, que representou a Associação Brasileira de Ongs (Abong) no grupo articulador da Cúpula, destacou que os participantes do evento afinaram a crítica contra a economia verde. “O que chamamos muita atenção é que existe um enorme descolamento entre a consciência da humanidade em relação à gravidade da crise ambiental e o resultado pífio das conferências internacionais em que os governos se reúnem para debater essa mesma crise. Parece que não estamos no mesmo mundo. O objetivo da cúpula era discutir alternativas não apenas teóricas, mas práticas sustentáveis que já estão ocorrendo no mundo inteiro e são limitadas porque não são assumidas pelos governos como políticas públicas”, pontuou.
De acordo com Ivo, a agroecologia é um dos exemplos dessas práticas não assumidas pelo poder público que, do contrário, assume o agronegócio, que levou o país a estar no primeiro lugar do ranking mundial de consumo de agrotóxicos. Outro exemplo é a matriz energética baseada nos combustíveis fósseis em detrimento de outras energias renováveis como a solar, a geotérmica e a eólica. “Foram mostrados exemplos na Cúpula dos Povos de montagem de aparelhos de energia solar, que são suficientemente baratos para aplicarmos no Brasil. Já existem experiências de aplicação, mas não se tornam políticas públicas. A solução é colocada na construção de novas usinas hidrelétricas que expulsam os povos indígenas e as populações ribeirinhas, no entanto, a utilização da energia eólica e solar seriam suficientes para desenvolvermos o país”, afirmou.
“O processo ONU não representa as mulheres”
Uma expressão do “rebaixamento de direitos” presente no documento final da Rio+20, é, de acordo com os organizadores, o veto pelo Vaticano, que sequer é estado membro da ONU, do trecho que falava nos direitos reprodutivos das mulheres. Para Cíntia Barenho, da Marcha Mundial das Mulheres (MMM), organização que também construiu a Cúpula, a restrição desses direitos evidencia a influência da igreja sobre os corpos das mulheres. “Deixar de abordar essas questões no documento final evidencia também a não preocupação com a saúde das mulheres, uma vez que os abortos clandestinos são uma das principais causas de morte de mulheres, então para nós só evidencia o quanto o processo oficial não nos representa”, apontou, durante a coletiva.
Cíntia destacou também a relevância que o tema ganhou na Cúpula dos Povos. “Conseguimos fazer com que os nossos documentos finais e os nossos debates incluísse a necessidade dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, pensando também que esse outro mundo que queremos construir tem sim que respeitar a decisão das mulheres sobre seus corpos e suas sexualidades”, afirmou. Para a militante, a discussão sobre as mulheres também levou em conta os impactos do modelo de desenvolvimento com os grandes empreendimentos, por exemplo, potencializando situações de prostituição.
Lucia Ortiz, da organização Amigos da Terra, destacou também que o tema da saúde foi bastante presente nas discussões da plenária 2: “Defesa dos bens comuns e contra a mercantilização”. “Tivemos uma convergência muito interessante entre os setores de justiça ambiental que defendem os bens comuns como a água, o ar, a biodiversidade desse processo de financeirização que representa a economia verde e os setores que debatem a cultura, a comunicação, a saúde, e esses também foram considerados bens comuns a serem defendidos dos processos de privatização, como a privatização do SUS”, disse.
Independência nas lutas
Durante a coletiva foi destacada também a independência da Cúpula dos Povos frente aos governos. De acordo com os coordenadores do evento, recursos públicos foram destinados ao evento, sobretudo por parte do governo federal, sem qualquer concessão por parte da sociedade civil. “Temos uma agenda crítica em relação ao governo, não somos situação e nem somos oposição, somos críticos, por exemplo, aos retrocessos ambientais que estão acontecendo, a questão da reforma agrária, que é uma agenda paralisada no governo, dos direitos indígenas, quilombolas, das mulheres, que não têm avançado satisfatoriamente”, disse Marcelo Durão, da Via Campesina. Participaram da coletiva 16 representantes de organizações, movimentos e redes que construíram a Cúpula como os quilombolas, os movimentos pela reforma urbana, camponeses, entidades sócio-ambientais e educadores.
Os organizadores da cúpula explicaram que a agenda de lutas tirada no evento incluem campanhas já realizadas pelos movimentos sociais, como a Campanha permanente contra os agrotóxicos e em defesa da vida, e lutas já em curso como a dos povos tradicionais em defesa dos seus territórios. “O documento conclui com uma proposta de ação unificada em âmbito mundial que seria o Dia mundial de greve. Este documento curtíssimo que fizemos aqui representa uma tentativa de leitura do que está acontecendo no mundo e nós entendemos que não basta responder a cada ‘crisesinha’ com pequenas ações. É preciso ir mais fundo no processo de resposta, pensar em como superar as causas estruturais dos problemas que a humanidade está vivendo e as campanhas vão nessas direções”, completou Darci Frigo.
A Cúpula dos Povos também se posicionou frontalmente contra o processo de impeachment do presidente Lugo no Paraguai, que pegou a todos de surpresa no dia 22 de junho, ultimo dia da Cúpula. Os participantes aprovaram um documento que chama o processo de golpe e convoca uma mobilização popular em todo o mundo de solidariedade ao povo paraguaio. ” Instamos nossos governos a tomar todas as medidas necessárias ao seu alcance nos órgãos regionais e internacionais correspondentes para garantir a continuidade democrática no Paraguai e não reconhecer a qualquer governo que não surja da vontade do povo paraguaio”, diz a carta.