pepe vargas2O ministro do desenvolvimento agrário, Pepe Vargas, disse à Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) no final do debate “Segurança e Soberania Alimentar”, realizado na noite de anteontem (19), na Cúpula dos Povos, que a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica pode sair do papel em breve. O decreto que fixa sua execução está em fase final de formatação, após meses de diálogo do governo com a sociedade. A agroecologia tem sido apontada como a principal alternativa ao atual modelo de desenvolvimento pelos movimentos sociais durante a Cúpula dos Povos.  

Durante o debate, mediado pelo jornalista Leonardo Sakamoto, diretor da Repórter Brasil, o ministro também afirmou que ao contrário do que pensa a bancada ruralista nacional, é possível produzir alimentos para a humanidade com outro modelo de desenvolvimento. “Queremos que os agricultores familiares se empoderem economicamente. Nós, inclusive, acreditamos que o nosso modelo da agricultura familiar é muito mais sustentável. O que tem de agroecologia no Brasil é fundamentalmente na agricultura familiar. Acreditamos que é possível introduzir outras formas, pois esta [agricultura industrial] emprega menos e usa mais agrotóxico”, complementou Vargas.

O ministro também afirmou que o Brasil evoluiu na constituição de políticas públicas de soberania alimentar, pois apesar dos problemas ainda existentes ocorreram avanços consideráveis. Ele exemplificou a Lei de Segurança Alimentar e Nutricional e a projeção do Brasil no mundo, além do seu protagonismo no Mercosul, onde inseriu o conceito de agricultura familiar que não existia. Vargas destacou a necessidade de trabalhar outras dimensões, como a cultural e a ambiental, na concepção de soberania alimentar.

Renato Maluf, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, explicou que no Brasil boa parte dos movimentos sociais e o próprio Consea [Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional] lutam pelo direito à alimentação adequada se sobrepor a outros princípios. Ele destacou que é importante aproveitar o momento para repensar os modelos de produção e distribuição de alimentos.

“A referência principal [da soberania e segurança alimentar] são os camponeses e agricultores, e um dos desafios é ser capaz de traduzi-la para diferentes setores da sociedade. O grande desafio é global, nós ainda estamos vivendo uma crise de alimentos. Esta revelou as facetas perversas do sistema. A crise, que é estrutural, deixou claro que a referência comercial não funciona mais. Os organismos internacionais se mostraram incapazes de lidar ela, e existe uma demanda de espaços multilaterais com participação social”, contextualizou.

Maluf também deu destaque ao papel proeminente do Brasil no cenário internacional, e defendeu um programa agrícola que deixe nosso mercado menos vulnerável. O ex-presidente do Consea enfatizou o direito à informação, pois somos permanentemente bombardeados por informações tendenciosas e indutoras de maus hábitos às crianças. “É preciso repensar esse modelo que distanciou produção do consumo e entregou nossa alimentação na mão de três ou quatro transnacionais que, de fato, determinam o que a gente come”, concluiu.

Agrotóxicos, transgênicos e Código Florestal

Os internautas e participantes dirigiram perguntas ao ministro Pepe Vargas, que não fugiu às respostas. O representante do governo federal reconheceu problemas no código florestal, mas ponderou que o governo fez uma aliança com a agricultura familiar e não com o agronegócio. Ele, no entanto, declarou que as alianças partidárias estabeleceram contradições no governo e a posição defendida pelo Estado foi derrotada na Câmara dos Deputados, mas depois recebeu vetos da presidenta Dilma Rousseff.

Vargas também foi questionado sobre o uso maciço de agrotóxicos pela agricultura brasileira, e confirmou o uso excessivo de venenos mas observou que as experiências agroecológicas estão sendo potencializadas para reduzir essa contaminação. Ele defendeu que o governo tem interesse em diminuir o uso de agrotóxicos e a sociedade, inclusive os consumidores, deve debater o tema. “Os agrotóxicos banidos em outros países devem ser banidos aqui, não faz sentido”, criticou.

Quanto aos transgênicos, o Ministro do Desenvolvimento Agrário avalia que o Brasil perdeu o debate há alguns anos. Houve um processo de grande entrada de transgênicos no país, inclusive para pequenos produtores rurais. Isto é problemático, mas o governo tem apoiado a produção com sementes crioulas, declarou. O Brasil tem exportado, inclusive, sementes de feijão para a Venezuela.

“O neoliberalismo, embora ainda hegemônico, se encontra numa profunda crise. O grande dilema é que todo sistema em crise não coloca imediatamente algo que constrói uma nova hegemonia por definitivo, é um processo que às vezes é mais longo do que a gente imagina”, observou.

Mercado internacional e mercantilização da natureza

É preciso ir além do foco de direito à comida e considerar a soberania do alimento, destacou Karen H. Kuhn, diretora do programa internacional do Instituto para Política de Agricultura e Comércio. Segundo a pesquisadora norteamericana, as pessoas devem tomar decisões levando em consideração seus problemas locais. Não é possível manter o padrão de poder e controle com as catástrofes e mudanças climáticas em curso. De acordo com Kuhn, precisamos de políticas focadas na redução da pobreza, mas sem prejudicar o ambiente e comercializar a natureza. Ela também criticou o excesso de especulação no mercado de commodities dos Estados Unidos e Europa, que geram volatilidade nos preços dos alimentos em todo o mundo.

“Os alimentos se tornaram commodities financeiros, eles são vendidos ao invés de constituírem blocos fundadores dos direitos humanos. Reformas estão ocorrendo, mas muitos desses atores financeiros lutam contra. Os preços servem como referência, então é difícil para os agricultores e consumidores entenderem os sinais. É preciso curar esses mercados para implantar políticas adequadas. Muitas vezes se fala somente no acesso à comida, sem pensar em como esta comida é produzida. A agroecologia é a melhor maneira de lidar com essas interconectividades”, afirmou.

A disputa de terras e a pobreza

Cerca de 60% das quase 1 bilhão de pessoas pobres do mundo estão nas áreas rurais da Ásia. Segundo Esther Penunia, secretária-geral da Associação Asiática de Agricultores, quando se fala em 10 hectares você já é considerado um grande fazendeiro nessa região. As mulheres são as mais discriminadas e as que mais sofrem nesse contexto, por isso são a maioria sem terra. Esther deu dois exemplos em sua terra natal, as Filipinas, onde há 20 anos as terras pertenciam a 10% da população, muitos deles integrantes do governo. Graças à luta dos povos filipinos, a partir de 1998 uma reforma agrária foi implantada e foi possível conquistar avanços.

“A terra é algo básico fundamental. Aqueles que fizeram as leis eram fazendeiros e seus amigos, tivemos que ir às ruas. Marchamos por 30 dias pelas terras. Hoje temos uma cooperativa com 600 famílias trabalhando em 800 hectares, em terras dadas pelo governo. Eles definiram coletivamente a plantação no terreno, e hoje são o principal fornecedor de arroz na cadeia de mercado. Tiveram chance de acesso à terra e mercado, tecnologias, e por isso têm um forma digna de vida. Isso é desenvolvimento sustentável”, exemplificou.

A economia verde instalada na Ásia, segundo a filipina, condenou os agricultores pois forneceu subsídios governamentais para os agrotóxicos e fertilizantes até as terras ficarem inférteis e os camponeses endividados. Na Índia, por exemplo, muitas pessoas estão se matando por não conseguirem pagar suas dívidas ao ficarem dependentes da compra desses produtos. Por isso, é preciso lutar para que os governos comprem os produtos da agricultura familiar e ofereçam incentivos e apoio. Depois de uma campanha global em 2008, a ONU anunciou que 2014 será o ano mundial da agricultura familiar.

Renato Maluf lembrou que no Brasil os proprietários de terra representam uma classe social tradicional e privilegiada desde a colonização portuguesa no país. Os latifundiários sempre tiveram muito poder político e econômico. São os principais agentes de conservação do modelo hegemônico de produção no campo, sem preocupação com meio ambiente e outros elementos fundamentais para o desenvolvimento sustentável. Na contramão dessas raízes históricas, os dados oficiais apontam que a agricultura familiar é responsável por aproximadamente 70% da produção agrícola brasileira e emprega cerca de 74% das pessoas no campo. Porém, 90% dos agricultores e camponeses ocupam apenas 24% das terras brasileiras. A esperança do especialista é que, pelo nível de saúde da população, as pessoas vão perceber o veneno nas comidas e entender melhor essa questão.

Em relação aos índices de produtividade, Pepe Vargas disse que à luz da legislação muitas propriedades que há 20 anos eram improdutivas hoje não mais são. Mas, segundo ele, mesmo corrigido ainda assim as terras para a reforma agrária não aumentarão substancialmente. O importante, na sua opinião, é que nessa mesma legislação é possível obter terras para a reforma agrária. No ano passado foram assentadas 22 mil famílias, e em 2012 existe quase 1 milhão de assentados da reforma agrária.