Por Eduardo Sá,
Foi um momento histórico para os movimentos sociais, agricultores e agricultoras que lutam pela preservação e valorização das sementes crioulas na Paraíba. O seminário “Pesquisa e a Política de Sementes no Semiárido”, realizado nos dias 30 e 31 de maio, no município de Lagoa Seca (PB), debateu os resultados da pesquisa conduzida em parceria pela Embrapa Tabuleiros Costeiros e a Articulação do Semiárido Paraibano (ASA-PB), com o apoio da Universidade Federal da Paraíba e o financiamento do CNPq. O encontro reuniu pesquisadores de diversas instituições, agricultores(as), representantes de movimentos sociais e organizações de assessoria, professores, estudantes e gestores públicos federais e estaduais.
A pesquisa foi realizada ao longo de três anos por meio de diversos ensaios de competição entre três variedades de milho distribuídas por programas públicos e cerca de 20 variedades de sementes crioulas cultivadas em várias regiões do estado. Em todos os campos de teste, as sementes da paixão, apelido dado pelos agricultores às variedades locais, apresentaram desempenho produtivo equivalente ou superior ao das variedades distribuídas pelo governo. Os experimentos foram realizados na região da Borborema, no agreste paraibano, e no Cariri, região mais seca do estado da Paraíba.
Os agricultores participaram de todas as etapas do processo e realizaram o manejo sem o emprego de agroquímicos . Como as chuvas variaram de ano para ano e de local para local, foi possível confirmar que o uso da diversidade de variedades sempre assegura maior segurança do que as sementes melhoradas em centros de pesquisa com o uso de adubação química e irrigação. Além da produtividade dos grãos, várias outras características das variedades e que interessam aos agricultores foram avaliadas. Entre elas destacam-se: a espessura da planta, a quantidade de palha, a cor, o peso e tamanho das sementes, além da resistência a pragas e secas.
Uma história de conquistas e de ameaças
De acordo com Luciano Silveira, da AS-PTA, o seminário e a pesquisa estão integrados à construção de uma ação coletiva da agricultura familiar que veio pela necessidade de valorizar as sementes locais. A rede de Bancos de Sementes Comunitários da Paraíba está disseminada em todo o estado. Esse é um momento histórico, e o objetivo da ASA-PB é construir uma política de sementes que assegure a conservação desse patrimônio genético em mãos da agricultura familiar. Ele destaca que os sistemas de gestão das famílias são extremamente sofisticados, com o manejo de diversas espécies atendendo o mercado e as preferências culturais da população. A estocagem de sementes da paixão faz parte da tradição das famílias e das relações de troca, que disseminaram e foram ajustadas ao contexto social, ecológico e econômico para cada região.
Luciano também lembra que isso não ocorreu de forma fácil, pois o modelo de desenvolvimento brasileiro sempre jogou a população à margem do processo. Os recursos sempre estiveram concentrados nas mãos das elites e poderosos, e a lógica da exclusão e subordinação continua dominante. Mas os camponeses sempre fizeram a resistência, e têm buscado construir alternativas com estratégias coletivas. Desde a década de 90, os movimentos vêm se fortalecendo. Cerca de 220 variedades já foram resgatadas e estoques familiares e comunitários asseguram autonomia mesmo em épocas de secas, como a que estamos atravessando nesse momento.
“Na seca de 1993 os movimentos sociais ocuparam a Sudene, cobrando do governo ações estruturantes na linha da convivência com o semiárido. O governo Itamar implantou a primeira política de sementes”, destacou.
A ASA-PB manteve sua luta nessa área e aos poucos foi conquistando novas vitórias e ampliando a abrangência da rede de bancos de sementes comunitários. Em 2002 conseguimos aprovar na Assembleia Legislativa da Paraíba uma Lei estadual que reconhece a função dos Bancos de Sementes Comunitários na alimentação local. Desde 2004 a Festa Estadual da Semente da Paixão vem sendo realizada anualmente. O programa Fome Zero, no início do governo Lula, incorporou algumas inovações a partir das propostas geradas pela sociedade. Hoje existe o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), gerido pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) que, desde 2006, compra sementes crioulas dos agricultores familiares e as doa para os bancos de sementes. É uma política que fortalece os Bancos de Sementes e a autonomia dos agricultores. Mais recentemente o Programa Brasil sem Miséria passou a ignorar esse formato inovador que já vinha funcionando ao adotar a estratégia de distribuir sementes produzidas pela Embrapa em outras regiões, desconsiderando a diversidade de materiais genéticos e as capacidades das comunidades de produzirem, armazenarem e intercambiarem suas próprias sementes entre si.
Plenária de exposições, debates e questionamentos
Cerca de 100 pessoas participaram do evento, que deu espaço para intervenção de muitos presentes. Os agricultores, por exemplo, destacaram a importância da valorização e registro dessas sementes, coisa que seus avós não tiveram oportunidade, pois muitas se perderam com o tempo. Críticas foram feitas a programas governamentais concebidos na contra mão das realidades locais e com impedimentos burocráticos que dificultam a descentralização e a construção de autonomia local. O combate à utilização de venenos, inclusive nas sementes do governo, que prejudica a saúde do agricultor e do consumidor também foi um tema tocado por muitos participantes.
Os pesquisadores também deram sua contribuição para a discussão, ressaltando as dificuldades que muitas vezes enfrentam para tratar esses temas nas suas instituições. Na Embrapa, por exemplo, os estudos sobre agroecologia e, principalmente, as pesquisas com participação ativa das comunidades ainda são marginais. Geralmente as pesquisas são concebidas com enfoque convencional, mais voltado para reproduzir um padrão empresarial de produção que distante da agricultura familiar camponesa. São muitas amarras burocráticas e preconceitos acadêmicos enfrentados nessa linha de estudo.
Guardiões de sementes
Seu Zé Pequeno é integrante do Pólo Sindical da Borborema, e armazena sementes desde 1974. Segundo ele, as sementes da paixão são um patrimônio que merece ser respeitado. É um conhecimento transmitido por gerações, complementou.
“Graças à vida dos antepassados temos essa libertação, isso é muito importante para os agricultores. Se essas sementes saem, esse prejuízo é para a agricultura familiar e a segurança alimentar. Há 30 anos não tinha como plantar, porque as sementes estavam nas mãos dos políticos, dos prefeitos. E a gente via filas para enfrentar um vereador por causa dos votos. Passamos por muitos sacrifícios”, destacou.
Ele foi um dos expositores do Carrossel de Experiências, que estava previsto na programação do evento, com a apresentação dos ensaios comparativos. Ao relatar as pesquisas sobre armazenamento, Zé Pequeno reforçou o teor sagrado das sementes da paixão para os agricultores e explicou que eles desenvolveram métodos próprios de estocagem. As seleções vão desde a escolha da planta mais sadia, até os vasilhames que devem estar bem vedados. Geralmente é utilizada cera de abelha para fechar os silos com sementes, além das garrafas pet e pimenta ou cinza para conservação do produto. Métodos como estes são usados há décadas, só não tinham o atestado científico do processo.
Conclusões do seminário
O encerramento do evento ocorreu no Banco Mãe de Sementes do Polo da Borborema. Os movimentos avaliaram que essa atividade foi histórica, no sentido de aproximar as instituições para pensar políticas públicas e o futuro da agricultura familiar. O que era teoria, agora é comprovado cientificamente pela Embrapa e universidades, atestando o fundamento das reivindicações históricas dos movimentos. Como as pesquisas orientam as políticas públicas, a expectativa dos agricultores da região é que o governo dê outro tratamento às sementes da paixão daqui para frente. A qualidade das sementes e seu armazenamento, assim como sua diversidade, devem ser levadas em consideração.
“Muitas vezes essas sementes sequer têm sido consideradas como sementes. Nós entendemos que é semente de boa qualidade. A pesquisa retoma um processo que existe há anos. Os bancos de sementes não são uma invenção recente. Eles simplesmente não foram reconhecidos durante muito tempo. Nós sabemos que a semente está permanentemente em risco por causa do clima, mas ela sempre foi um forte instrumento de poder, de sujeição e dependência. Assegurar a semente local é romper as amarras dessa dominação. É um absurdo o Estado considerar as sementes como grãos. Depois de realizadas essas pesquisas não vamos mais aceitar isso”, avaliou Paulo Petersen, Coordenador Executivo da AS-PTA e Vice-Presidente da Associação Brasileira de Agroecologia.
Petersen lembrou que os movimentos criticavam o Programa Nacional de Sementes, implantado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário com participação da Embrapa, porque rompia com as estratégias dos agricultores de conservar suas próprias sementes. Mecanismos de autonomia dos agricultores, nesse contexto, são fundamentais, e isso voltou a ser ignorado no Brasil Sem Miséria, segundo ele. Defensor da Agroecologia, Paulo alerta que a semente é um elemento essencial para a construção de sistemas agrícolas mais autônomos. Os programas públicos e o programa precisam fortalecer as organizações já existentes que já comprovaram ser capazes de gerir recursos públicos com eficiência e transparência. Não há porque instituir uma lógica distributiva quando as comunidades já mostraram que precisam de apoio para conservar as suas sementes.
“A agricultura familiar presta um serviço à sociedade, e sequer é remunerada. Ao contrário, é penalizada. É preciso entender a cultura do povo. As sementes do governo são boas. Podem até ser distribuídas. Só que não basta distribuir uma ou duas, porque cada uma produz de uma forma em determinado lugar. O desafio é pensar um programa público de grande abrangência mas que respeite as especificidades locais. Isso requer que seja encurtado o circuito entre a produção e a utilização da semente. Técnica e metodologicamente já demonstramos que isso é possível. Institucionalmente, também. A ASA-Brasil é uma rede altamente capilarizada por todos os estados do semiárido que já demonstrou capacidade de implementar programas muito mais complexos e caros que viabilizam a construção de infraestruturas hídricas por meio de tecnologias sociais. O Estado já elaborou o mecanismo do PAA que se mostrou um instrumento adequado para fomentar essas redes locais de auto-abastecimento de sementes de boa qualidade. Precisamos agora afinar as violas com os gestores públicos para elaborarmos propostas que nos permitam alcançar grande escala social, tal como o governo vem nos desafiando. Mas precisamos avançar nessa direção sem inviabilizar os processos locais de construção de autonomia”, concluiu.
Em nome da Embrapa, Edson Diogo disse que esse foi um primeiro momento de parceria com o órgão de pesquisa e pediu apoio da sociedade para dar continuidade aos estudos. Para ele, os temas precisam ser aprofundados e a parceria intensificada.
“Precisamos que as organizações estejam organizadas e demonstrem a intenção da Embrapa participar de forma mais intensiva junto às comunidades. A discussão mais importante é a aplicação das políticas, que muitas vezes quando saem do papel se desvirtuam. Não tem muito sentido uma política de sementes que não valorize a própria semente que o agricultor cultiva há anos. Essa pesquisa apenas revela tudo o que vocês já conhecem: o valor como alimento, ração do gado, até religioso, etc. Acho que a política tem que mudar para atender a sociedade, precisa abrir espaço para que essas valorizações do que já existe sejam contempladas”, afirmou.
O secretário executivo da Agricultura Familiar no estado da Paraíba, Alexandre Araújo, destacou que as sementes da paixão envolvem uma série de valores que estão além do plano material, pois marcam costumes, simbolizam riqueza, a permanência no campo, dentre outros atributos, como os conhecimentos tradicionais. Araújo afirmou que o estado da Paraíba quer fortalecer as dinâmicas que envolvem as sementes na região.
“Não nos falta comprovação científica, pois as validações e escores sempre tiveram bom desempenho há décadas. As sementes convencionais têm importância, mas não podem ser exclusivas. Não fosse a ação dos guardiões, provavelmente se tivéssemos adotado os pacotes tecnológicos implantados pela Revolução Verde teríamos perdido essa diversidade. Em SolâaneiaSolânea, no lançamento do Brasil Sem Miséria, não conseguimos uma política de sementes que valorize esse processo ao longo dos anos com a semente da paixão. O governo do estado da Paraíba acredita que vamos consolidar o fortalecimento dessas redes de bancos de sementes proteção neste ano”, afirmou.
A Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) tem sido uma grande parceira dos movimentos em relação às sementes, e esteve representada no encerramento por Sílvio Porto, diretor de Política Agrícola e Informações. Ele ressaltou o desafio de perceber os processos nessa região, e que é fundamental a humildade dos gestores públicos para entendê-los e traduzi-los em ações públicas com ferramentas que fortaleçam as iniciativas. Porto observa que atualmente existem dois caminhos em relação às sementes: os processos populares na lógica das casas de sementes, e a produção em grande escala e distribuição individual, que não traz autonomia aos agricultores.
“A dicotomia do velho saber tradicional encarado por muitos como atrasado, e o científico como moderno é extremamente perversa, pois despreza o acúmulo histórico da agricultura familiar. O resultado dessa pesquisa tem um valor muito expressivo, pois a semente da paixão já é uma grande referência nas sementes crioulas no Brasil. É preciso sair da lógica da seca para uma da convivência com o semiárido, tal como propõe a ASA-Brasil. Ver as sementes como patrimônio da humanidade, não no sentido de restrito à economia de mercado. Eu acredito que podemos construir uma grande referência, que aos poucos substitua essa lógica. Temos que romper com a criminalização. O que vocês produzem é um legado histórico muito importante para nossa biodiversidade. Vocês têm tido capacidade de pautar o governo, é preciso levar isso para um conjunto de outras comunidades”, propôs.
O Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) abriu um edital a partir de 2011 para compras de sementes, mas muitas organizações criticam a dificuldade de se adequar às exigências. Os projetos acima de R$ 300 mil serão operados pelo MDS, e os demais continuarão sob a responsabilidade da Conab. De acordo com Marcos Del Fabbro, diretor de Fomento à Produção do MDS, o governo federal expressa a grande diversidade presente na sociedade, embora tenha uma direção clara e hegemônica. O campo da produção de sementes, segundo ele, tem fortalecido os hábitos locais e a cultura popular tem norteado as políticas.
“Saímos ano passado com R$ 150 milhões para água e hoje temos R$ 800 milhões. Fortaleceu o programa porque tinha lastro, metodologia, instituições, condições, então se a gente fortalecer essas ações temos que ter a capacidade de responder a elas. O PAA tem um orçamento de R$1,3 bilhões nesse ano, e até 5% pode ser canalizado para compra de sementes. Há uma relação muito forte em avançar nessa política. O PAA está buscando segurança jurídica para continuar operando na Conab, para que as sementes sejam comercializadas não como grãos. Nisso a Embrapa tem papel fundamental, ela produz sementes para o Brasil Sem Miséria. Parte disso podia estar acoplado a iniciativas como essa, inclusive aprimorando esses processos.
O representante do MDS afirmou que o governo não entrega as sementes de forma distributivista, e fomenta as experiências produtivas na lógica da autonomia da família. Fabbro acredita que a dinâmica em grande escala pode conter uma tendência de padronização dos técnicos de Ater, mas defende que pode ser complementar e o Brasil sem Miséria procura a aproximação das conquistas dos movimentos. A responsabilidade e meta do governo, assim como os recursos, são muito grandes e, por isso, é preciso agilidade e pragmatismo, complementou. Foi anunciado um convênio de R$ 32 milhões para o governo da Paraíba até o próximo ano, que, segundo o diretor, sinaliza o interesse do governo federal para o fortalecimento desse processo.
“O MDS e o Brasil Sem Miséria têm buscado fortalecer esse processo. Estou sinalizando para vocês que tem espaço para esse debate no governo federal. Quando vocês lançaram um manifesto, a ministra leu. As pessoas ficam sabendo, entendem a lógica, isso tem que ficar claro. Não há intenção de abafar qualquer iniciativa vigorosa de autonomia, como essa apresentada por vocês. Mas alerto que a política é rápida, então também temos que ser rápidos nessa construção”, finalizou.