Por Cida de Oliveira
Da Revista Retratos do Brasil
Durante muito tempo, uma dieta rica em frutas, verduras, legumes e cereais era garantia de saúde porque suas vitaminas, minerais, fibras e proteínas são essenciais para o bom funcionamento do organismo. Mas essa opção já não é tão saudável. Agroquímicos largamente usados para compensar a terra maltratada e exaurida e para matar ervas daninhas e insetos, sob pretexto de aumentar a produção, permanecem nos alimentos e causam uma série de doenças. Estudos científicos, inclusive dos próprios fabricantes durante o desenvolvimento dos produtos, constatam prejuízos à saúde.
A pesquisadora Raquel Rigotto, professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará, conta que há intoxicações agudas que surgem logo após as pulverizações, sinalizadas por dor de cabeça, náusea, alergia, ardor na pele, no nariz e até convulsões, coma e morte. E há os efeitos crônicos pelo acúmulo de veneno no organismo, afetando quem planta e quem consome. “Causam alterações hormonais, no fígado e rins, abortos, malformações congênitas, câncer de tireoide, de mama, leucemia, distúrbios cerebrais e comportamentais, como tentativas de suicídio”, esclarece Raquel, que estuda os impactos das pulverizações aéreas na região da chapada do Apodi, no Ceará. Há aumento de casos de câncer, mas a pesquisadora diz que a subnotificação esconde os números reais. Existe ainda o potencial agravamento dos problemas de saúde devido a mistura de ingredientes ativos, dosagens maiores e as aplicações seguidas para compensar a resistência das plantas aos componentes.
O relatório mais recente do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), traz dados preocupantes. Das 2.488 amostras colhidas em 2010, apenas 37% estavam livres de veneno. Isso preocupa por se tratar de alimentos comuns da mesa dos brasileiros: arroz, feijão, alface, tomate, batata, cebola, laranja, repolho, pepino, abacaxi, beterraba, cenoura, couve, maçã, mamão, manga, morango e pimentão. E somente em 35% havia resquícios em doses inferiores ao limite permitido. Já em 28% havia sinais de produtos proibidos para aquela planta, além de substâncias autorizadas mas acima do permitido.
Há culturas que recebem produtos impróprios, banidos no país ou nem sequer registrados para uso. Segundo a agência, 59,9% das amostras apresentaram pelo menos um ingrediente ativo irregular e 23,3%, ao menos dois. Em uma porção de morango havia seis diferentes ingredientes e em uma de pimentão, sete. Entre os venenos mais encontrados estão o carbendazim e o clorpirifós, com uso restringido pela Anvisa, o metamidofós, em processo de proibição, e o acetato. Das 694 porções insatisfatórias, 30% continham sobras de componentes ativos que não deveriam ser usados porque estão em processo de reavaliação toxicológica. “A mandioca, o milho e a soja, base da indústria de muitos alimentos, ainda não são analisados porque o processo é complexo e caro”, afirma Luiz Cláudio Meirelles, gerente-geral de toxicologia da Anvisa.
Segundo Meirelles, o órgão trabalha pelo banimento de agrotóxicos proibidos em outros países e pelo cumprimento das normas estabelecidas por lei. “À luz do conhecimento científico atual, há limites para o uso seguro. Mas é claro que isso pode mudar. Há 30 anos, substâncias hoje sabidamente cancerígenas, como o BHC (hexabenzeno de cloro) e o DDT (dicloro-difenil-tricloroetano), eram liberadas.”
A presença de resíduos acima do limite tido como seguro decorre do uso abusivo, sem intervalo entre a última aplicação e a colheita, e do desrespeito às orientações. “Lavar os alimentos em água corrente só retira parte dos resíduos presentes na casca e nas folhas. Alguns agrotóxicos são absorvidos pelos tecidos internos da planta e, se não forem degradados pelo metabolismo do próprio vegetal, serão ingeridos”, afirma Rosany Bochner, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e coordenadora do Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas (Sinitox). Como ela destaca, a toxidez dessas substâncias supera a dos medicamentos. “Enquanto o agrotóxico mata três a cada 100 intoxicados, os medicamentos matam um a cada 200.” Em 2009, foram registrados 7.677 casos agudos (7,64% do total) causados por produtos de alta toxicidade, como o chumbinho, vendido nas cidades e de maneira ilegal, para matar ratos. “Muito usado em tentativas de suicídio, acarreta um grave problema de saúde pública.”
O Brasil é o maior consumidor mundial de agrotóxicos. Em 2010, foram comercializados mais de 1 milhão de toneladas, o equivalente a 5 quilos por habitante. A triste liderança começou entre 2001 e 2008, quando as vendas passaram de US$ 2 bilhões para mais de US$ 7 bilhões. No mesmo período, a área cultivada por alimentos aumentou só 4,59%. “Os lucros seguem para as matrizes no exterior. Nós ficamos com as doenças e o impacto ambiental”, diz o agricultor Cleber Folgado, da coordenação da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida.
As extensas lavouras de soja, milho e algodão colocam Mato Grosso como o maior consumidor nacional. Como em outras áreas, no estado o veneno geralmente é pulverizado por aviões ou outros implementos, ignorando limites de córregos, beiras de rio e quintais das casas, conforme determinam inócuas instruções normativas do Ministério da Agricultura. Segundo especialistas, o vento e as chuvas espalham o veneno, alcançando também os lençóis freáticos.
Estudos coordenados por Wanderlei Pignati, professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Mato Grosso, mostram que, além de pessoas e animais, a terra, o ar, a chuva, as águas e até o leite materno estão contaminados nas cidades de Rio Verde e Campo Verde. Ele conta que, das 232 amostras de água de poços artesianos, 83% continham vários tipos de pesticida. O mesmo ocorreu com 56% das amostras de água de chuva recolhidas nas escolas: 25% apresentavam pelo menos dois tipos de veneno, como o endossulfam – que será proibido a partir de julho. O leite de 62 mães que participaram do estudo continha uma substância derivada do DDT, proibido em 1985 para a agricultura, e 76% tinha endossulfam. Algumas das mães tiveram filhos com malformações congênitas. No sangue de trabalhadores rurais havia o dobro de resíduos de glifosato em relação ao de moradores da zona urbana.
“Comparações mostram que o problema é maior onde os agroquímicos são usados em quantidades maiores”, afirma Pignati. Segundo ele, outras pesquisas no estado apontam maior incidência de câncer nos municípios onde há maior pulverização. Os dados respaldam a luta de movimentos sociais e sindicatos, que já resultou em ações do Ministério Público.
Pesquisadora da Fiocruz em Recife e professora da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Pernambuco, Lia Giraldo da Silva Augusto afirma que os malefícios dos agrotóxicos são denunciados desde a década de 1960. Os produtos daquela época, os organoclorados, foram substituídos pelos fosforados, que se mostraram ainda piores. “Como essas substâncias não atacam apenas as pragas que se deseja eliminar, as intoxicações são mais intensas.” Outra questão é a falta de estudos sobre os danos causados pelo acúmulo de pequenas quantidades. “Prevalece ainda a ideia de que os agrotóxicos só trazem problemas agudos. O que mais preocupa, em termos de segurança alimentar, é justamente essa exposição crônica, que se confunde com outras causas de doenças.”
Conhecendo os riscos dos agrotóxicos, a professora de tai chi chuan Maria Luiza Hourneaux Affonso, de Santo André, no ABC paulista, optou por uma alimentação agroecológica há mais de 30 anos. E ganhou saúde. Antes, ao fazer exames para doar um rim para o pai, soube que tinha o mesmo problema. A doença, que atinge todos os familiares, evolui para a insuficiência renal, que exige sessões de hemodiálise e posterior transplante. “Como os filtros do meu organismo estavam comprometidos, eu não poderia continuar ingerindo venenos. Deixei de consumir alimentos com agrotóxicos, cortei carne, e convivo até hoje com meus rins.” Segundo conta, nunca precisou fazer hemodiálise. Um primo bem mais novo não teve essa preocupação e está na fila do transplante.
No final de 2011, a Comissão de Seguridade Social da Câmara aprovou relatório sobre o uso de agrotóxicos. De acordo com o texto do relator, padre João (João Carlos Siqueira, PT-MG), esses produtos são beneficiados pela redução de ICMS e isenção de IPI para vários ingredientes ativos perigosos e de recolhimentos para o PIS/Pasep e Cofins. Há ainda benefícios estaduais, como no Ceará, onde a isenção chega a 100%. Já a produção agroecológica, com métodos alternativos para o controle de pragas e doenças, não tem incentivos.
Mesmo assim, há pequenos agricultores que romperam com o sistema que os obriga a comprar sementes, inclusive transgênicas, e pesticidas como condição para o acesso ao crédito. Muitos trabalham para produzir alimentos livres de veneno. Em Linhares, no Espírito Santo, os familiares de Ana Cristina Soprani e Elias Alves dos Santos deixaram para trás a monocultura do café praticada por mais de duas décadas. Nos últimos 12 anos, se organizaram para o retorno a uma produção diversificada. Tiveram de recuperar o solo degradado, frequentar reuniões e cursos de agroecologia. Hoje produzem feijão, milho, mandioca, café, banana, laranja, abóbora, quiabo, jiló, maxixe, mamão e coco verde, além de doces e pães caseiros. Ao todo, são comercializados 1.600 quilos de alimentos toda semana. “Não queremos selo para agregar valor à nossa produção, mas oferecer à classe trabalhadora o mesmo alimento saudável que está na nossa mesa”, diz Ana Cristina.
Em Nova Santa Rita (RS), a Cooperativa dos Trabalhadores Assentados da Região de Porto Alegre já comercializa arroz branco, integral e parboilizado. A safra deste ano está prevista em 280 mil sacas. São 417 famílias, de 16 assentamentos, cultivando 3.993 hectares de arroz ecológico. Para o produtor Emerson José Giacomelli, essas famílias poupam o meio ambiente de agressões químicas. “O arroz tradicional utiliza muito inseticida, adubo, fertilizante e ureia, que contaminam a água dos arrozais e, depois, os córregos para onde correm.” Outro diferencial, segundo ele, é o preço. Como as famílias controlam desde a produção das sementes até a distribuição, os produtores vendem mais barato e têm melhor renda.
Para a agrônoma Nívia Regina da Silva, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), é possível alimentar toda a população sem agrotóxicos. Isso, porém, exige mudanças no campo, hoje marcado pela concentração de terra, monocultura de produtos para exportação e uso de sementes modificadas, fertilizantes e pesticidas. “A luta do pequeno agricultor, que realmente produz alimentos, é enorme. Ele é obrigado a comprar sementes que não brotam, que exigem a presença de agroquímicos, os quais, por sua vez, exigem sementes melhores. É um círculo vicioso. Se não mudarmos essa forma de produção, teremos um país doente.”