“Temos a absoluta convicção de que a economia verde proposta pelas Nações Unidas e pelas corporações que estão dominando o debate levará o mundo ao colapso”, afirma Fátima Mello, diretora da FASE e membro do comitê facilitador da sociedade civil para a Rio+20
Confira a entrevista.
No próximo mês de junho, a cidade do Rio de Janeiro será sede da Rio+20, a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável. Paralelamente ao evento, está sendo organizada a Cúpula dos Povos, com uma proposta alternativa, repleta de atividades, no Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro. “A Cúpula dos Povos será um espaço de experimentação e visibilização concreta das práticas que queremos ver no mundo”, afirma Fátima Mello, membro do comitê facilitador da sociedade civil para a Rio+20. Ela concedeu a entrevista que segue à IHU On-Line, por telefone, onde dá mais detalhes sobre a organização desta atividade e sobre a relação com a conferência oficial, que tem como tema de destaque a questão da economia verde. Sobre esse conceito, Fátima esclarece que “se olharmos o documento chamado ‘rascunho zero’ da ONU, a sessão sobre economia verde coloca toda a crença de que o mundo será salvo pelas novas tecnologias, que a tecnologia salvará o mundo. Isso é uma mentira. As novas tecnologias podem aprofundar as desigualdades no mundo se forem conduzidas do jeito que estão sendo, pelos interesses das grandes corporações. Essa é a nossa primeira crítica, contundente, às propostas de economia verde dominantes”.
Fátima Mello é membro da FASE-Solidariedade e Educação. Integra a Coordenação Geral da Rede Brasileira pela Integração dos Povos – Rebrip, foi uma das facilitadoras das cinco primeiras edições (2001-2005) do Fórum Social Mundial e é membro do comitê facilitador da sociedade civil para a Rio+20. É graduada em História, pela PUC-Rio, onde também recebeu o título de mestre em Relações Internacionais.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Por que a escolha do Aterro do Flamengo como o espaço que organizações ambientalistas, redes sociais, grupos indígenas e de agricultores, movimentos sociais, de mulheres, jovens e negros pretendem ocupar na Rio+20?
Fátima Mello – Pelo menos por três motivos. O primeiro é um motivo simbólico, da herança histórica que temos em relação ao Fórum Global, realizado durante a Rio 92, no aterro. Ali constituímos uma plataforma de lutas do que era, naquele momento, o início desse ciclo de movimentos globais contra o neoliberalismo. Havia 45 tendas de assuntos dos mais diversos, desde a luta contra a dívida externa e contra o livre comércio, até as lutas relacionadas à biodiversidade, à cooperação internacional e pelas mulheres. Então, é muito simbólico reocupar o mesmo espaço, 20 anos depois, tentando reconstruir uma plataforma para um novo ciclo, que pretendemos inaugurar na Rio + 20, de novas convergências do movimento global.
O segundo motivo é porque queremos convocar a sociedade a debater o que nós consideramos que deveria ser a agenda da Rio+20. A nosso ver, o Riocentro, onde vai acontecer a conferência oficial, é um lugar totalmente isolado da dinâmica da cidade e da sociedade. E o aterro do Flamengo fica no centro da cidade; é um espaço democrático, ocupado pelo povo, onde pessoas de todas as partes da cidade podem chegar. É um local aberto, que não tem problema de credenciamento, como vai ter lá no espaço oficial. E queremos constituir ali uma pauta de debates com a sociedade, para que ela possa dialogar conosco sobre as injustiças ambientais e sociais que estão levando o mundo ao colapso.
E o terceiro motivo vem do fato de que avaliamos que a pressão maior que podemos e queremos fazer sobre a conferência oficial deve ser feita a partir da sociedade, desde fora, para que ela tenha compromissos efetivos, condizentes com a maior crise capitalista desde 1929, com soluções reais para superarmos essa crise. Vamos fazer essa pressão desde o aterro e vamos garantir canais de comunicação eficazes com o Riocentro. Teremos uma TV da Cúpula dos Povos, que vai levar nossas demandas, nossas avaliações para dentro do Riocentro e também vamos levar notícias do Riocentro para dentro da Cúpula. Haverá um sistema de comunicação que nos manterá ligados à conferência oficial, mas de forma autônoma e com a pressão que vem das ruas.
IHU On-Line – Como será organizada a Cúpula dos Povos no local?
Fátima Mello – Haverá uma programação com debates, plenários, oficinas, dentro do que chamamos de atividades autogestionadas, que convergirão para momentos de síntese de propostas. Nas assembleias de mobilização, ou nas assembleias dos povos em luta, vamos acolher os debates que estarão acontecendo nas diversas atividades autogestionadas e formaremos plataformas, tratados, propostas concretas que, a nosso ver, são as soluções que o mundo precisa para sair do colapso. Além disso, teremos também o que estamos chamando de “Território do futuro”. A Cúpula dos Povos será um espaço de experimentação e visibilização concreta das práticas que queremos ver no mundo. O abastecimento alimentar da Cúpula dos Povos, com cerca de 10 mil acampados, será feito pela produção familiar e camponesa. Teremos um espaço de mídia digital livre, além de trocas aceitas através da economia solidária; haverá geração de energia limpa; todo o tratamento do lixo será feito pelo movimento de catadores. Com isso, queremos elevar as experiências e práticas feitas pela agroecologia, pelas populações tradicionais, pelas populações urbanas, que estão buscando alternativas de renda, através de práticas contra-hegemônicas não corporativas. Vamos disputar um outro modelo na prática.
IHU On-Line – Como coordenar um acampamento de 10 mil pessoas?
Fátima Mello – São vários acampamentos. Teremos um acampamento da Via Campesina, que tem uma lógica de organização própria, com uma longa experiência nessa dinâmica; teremos os acampamentos indígenas, que também têm uma dinâmica própria; o acampamento das juventudes, que possuem lógica específica; e haverá os acampamentos dos quilombolas. O que estamos vendo é como garantir a infraestrutura necessária dentro das lógicas de organização de cada movimento que ficará acampado. No entanto, além deles, teremos a participação de amplos setores, que vão encontrar outras formas de se hospedar na cidade. É claro que o desafio da infraestrutura é enorme. Sabemos que a cidade está tomada pela lógica empresarial, que está organizando a cidade para os megaeventos (Copa, Olimpíadas). Os hotéis, os fornecedores, está tudo uma fortuna nessa cidade. Então, estamos lutando contra a lógica empresarial corporativa que reina na cidade do Rio de Janeiro. A própria organização da Cúpula já é um exercício de contra-hegemonia na prática.
IHU On-Line – O que fará parte da agenda alternativa à conferência oficial e que será debatida na Cúpula dos Povos?
Fátima Mello – A agenda oficial está centrada na discussão de economia verde. E nós temos a absoluta convicção de que a economia verde proposta pelas Nações Unidas e pelas corporações que estão dominando o debate levará o mundo ao colapso. Se olharmos o documento chamado “rascunho zero” da ONU, a sessão sobre economia verde coloca toda a crença de que o mundo será salvo pelas novas tecnologias, que a tecnologia salvará o mundo. Isso é uma mentira. As novas tecnologias podem aprofundar as desigualdades no mundo se forem conduzidas do jeito que estão sendo, pelos interesses das grandes corporações. Essa é a nossa primeira crítica, contundente, às propostas de economia verde dominantes.
Segundo: as propostas desse conceito de “verde” apostam na financeirização da natureza como uma nova fonte de financiamento para a transição para a chamada economia verde. Então, a proposta é precificar o ar, criando um mercado de carbono; precificar a biodiversidade; privatizar os bens comuns, como a água, a terra; e, com isso, financiar o que eles chamam de transição. Nós acreditamos que o caminho a ser feito é o inverso, é exatamente recompor a ideia de bens comuns, ao invés de entregar tudo para o sistema financeiro. Temos que reconquistar a ideia de bens comuns. O sistema financeiro está capturando não só a natureza, como a política.
Outra coisa: a economia verde proposta pela ONU coloca o mercado como ator da transição. O mundo está do jeito que está exatamente por conta dessa tese. Esse conceito de economia verde mantém a mesma fórmula dos fluxos de investimentos e comércio de circulação global de mercadorias e capital que levou o mundo à situação de crise em que nos encontramos. O modelo de produção, distribuição e consumo deve ser radicalmente alterado, aproximando a produção do consumo, desglobalizando e relocalizando a produção, combatendo as desigualdades no acesso ao consumo. A questão das desigualdades está no centro do problema e da solução. A ONU só fala em combater a pobreza, mas não fala de combater a riqueza. O que nós vamos debater na Cúpula dos Povos é a tese da justiça ambiental. Esse conceito significa que existe uma imensa desigualdade nos impactos ambientais desse modelo de desenvolvimento. Quem mais sofre são as populações excluídas, os negros, os pobres. E, além do impacto diferenciado, existe também muita desigualdade no acesso ao consumo dos recursos naturais.
O modelo de agricultura e de produção alimentar pela agroecologia esfria o planeta, assim como várias outras soluções que vêm das populações tradicionais, dos sistemas agroflorestais e de outras práticas que não são hegemônicas. Nós não somos hegemônicos na sociedade, mas as nossas soluções precisam que nossos atores sejam hegemônicos. A agroecologia precisa de reforma agrária, de campesinato, precisa de valorização da pequena produção. Então, a questão é política. O embate sobre o modelo tem que alcançar o plano da política.
IHU On-Line – Em que sentido a inspiração do movimento dos indignados, o Ocupem Wall Street, estará presente no encontro e como ela se relaciona com os debates que deverão pautar a Rio+20?
Fátima Mello – Nós estamos construindo o processo de preparação aproximando os indignados, os movimentos do norte da África por democratização, e tentando construir um diálogo com as outras formas de organização de trajetórias de lutas dos movimentos sociais, nas últimas décadas. Consideramos que a Cúpula dos Povos é um momento estratégico de produzir convergências entre essas formas múltiplas de luta, de organização que estão ocorrendo ao redor do mundo.
IHU On-Line – Quais as principais demandas que o comitê facilitador da sociedade civil para a Rio+20 tem recebido?
Fátima Mello – Temos recebido muitas demandas de organização de atividades na Cúpula dos Povos, e atividades que tenham convergência com outras. Muita gente quer expor sua experiência, trazer para o debate e ter momentos de dialogar com experiências no mesmo campo. É isso que tentaremos facilitar que aconteça, para que não seja uma feira de experiências, mas de fato um momento de encontro, de produção de síntese de propostas e campanhas. Queremos que a Rio+20 não seja um evento apenas. A Cúpula dos Povos é um ponto numa trajetória de lutas. E esse ponto tem que se desdobrar para depois da Cúpula em uma agenda de lutas, de mobilizações, de campanhas, em uma nova plataforma.
IHU On-Line – Além do debate sobre a economia verde, quais as principais polêmicas que envolvem a Rio+20?
Fátima Mello – Outra questão que é muito preocupante na agenda oficial é a discussão de arquitetura institucional. O mundo está vivendo uma crise, o capitalismo está em crise. E as instituições que vêm regendo o sistema internacional estão em profunda crise também. São instituições que foram criadas depois da segunda guerra mundial, e que estão mostrando que não têm a menor condição de lidar com a nova correlação de forças que existe no sistema internacional, com as novas questões, a nova agenda e os novos atores que estão emergindo. A Rio+20 deveria ser o momento de criação de uma nova institucionalidade que seja condizente com o momento de disputa e transição que está em curso no sistema internacional. No entanto, o que está emergindo da agenda oficial é uma discussão de arquitetura institucional absolutamente insuficiente e equivocada. É a criação de um conselho de desenvolvimento sustentável, que não vai ter a força para alavancar as transformações necessárias e que não vai colocar em discussão a existência de instituições que estão falidas e obsoletas, como o FMI, Banco Mundial, a OMC. Pelo contrário. A tendência é que as resoluções nesse campo da arquitetura institucional na Rio+20 reforcem esse cenário existente hoje.