Carta elaborada pelos participantes do III Congresso Nacional da CPT, realizado em Montes Claros – MG, em maio de 2010
No clamor dos povos da terra, a memória e a resistência em defesa da vida
Neste momento em que a humanidade toda toma consciência do grito da mãe terra, nossa casa comum, a Comissão Pastoral da Terra reuniu-se em seu III Congresso Nacional, em Montes Claros, MG, de 17 a 21 de Maio de 2010, com o tema: “Biomas, Territórios e Diversidade Camponesa”. Trabalhadores e trabalhadoras, a maioria deste Congresso (376), de diversas categorias – indígenas, quilombolas, ribeirinhos, posseiros, assentados, acampados entre outros – tornaram palpável a diversidade camponesa deste Brasil e sua resistência diante do processo de destruição em curso. Ao todo 760 pessoas – 440 homens e 320 mulheres – fizeram ecoar no semiárido mineiro os clamores do povo da terra. 272 agentes da CPT – entre eles quatro bispos e 51 entre padres, religiosos e religiosas e seminaristas – e 112 convidados de movimentos populares e pastorais, parceiros, puderam sentir a vida que pulsa, nas comunidades camponesas, cheia de esperança, em meio a dificuldades e frustrações.
A Arquidiocese de Montes Claros, que neste ano completa seu centenário, e o Colégio São José, dos Irmãos Maristas, nos acolheram de braços abertos. O calor humano de Montes Claros contrasta com a frieza de intermináveis plantações de eucalipto e de pastagens que substituíram a rica biodiversidade do Cerrado pela monotonia do monocultivo predador na paisagem que circunda a cidade.
“Vamos lutar porque esse é o nosso lugar” (cacique Odair Borari, de Santarém – PA)
Tivemos a alegria de ouvir e conhecer muitas experiências de resistência e de luta de camponeses e camponesas de todo Brasil. Na defesa de seus territórios e de suas culturas, mostraram que é possível e necessário conviver com os diversos biomas sem destruí-los e alimentar uma relação de respeito e de fraternidade com a mãe terra e com todos os seres vivos.
Estas experiências nos fazem ver, também, a criatividade com que os camponeses e camponesas sabem responder aos desafios gerados pela crise ecológica e por um modelo de desenvolvimento que destrói os biomas de nosso País, de forma cada vez mais violenta e acelerada, concentrando terras e riquezas para poucos e matando muitas formas de vida.
“Matam até o querer” (Sabrina, 19 anos, de Montes Claros – MG)
Estas experiências, cheias de vida e de esperança, se misturam com o clamor diante do poder estarrecedor dos grandes projetos que, em nome de um equivocado crescimento, assassinam lideranças, expulsam povos tradicionais de seus territórios e degradam o meio ambiente com suas hidrelétricas, mineradoras, ferrovias, transposição de águas, irrigação intensiva, monocultivos, desmatamentos. São projetos impostos com arrogância, de cima para baixo, ludibriando a legislação agrária e ambiental. Revestem-se de um legalismo hipócrita com controle e direcionamento de audiências públicas.
“As leis nós temos que respeitar, mas as leis têm que respeitar nós” (Joaninha, 58 anos, MG)
Ouvimos a denúncia veemente de um Estado que, com uma mão dá a sua ajuda para mitigar a fome e a miséria imediatas, ou até para libertar modernos escravos, e que com a outra estimula, promove e financia este modelo perverso de crescimento que prejudica a sustentabilidade da sociedade e da própria vida.
São inúmeros os casos em que o poder judiciário se torna o braço jurídico que executa e legaliza a espoliação, despejando todo ano milhares de famílias e garantindo a impunidade de assassinos, de grileiros e de empresas que não respeitam as leis.
Ficamos indignados com a soltura, nestes mesmos dias em que realizamos nosso Congresso, de quem mandou matar Irmã Dorothy.
Veementes, também, foram as denúncias contra um legislativo inoperante e submetido aos interesses da bancada ruralista que quer mudar o código florestal para favorecer a expansão dos monocultivos, e que engaveta a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que propõe o confisco de áreas com trabalho escravo, e a PEC que reconhece o Cerrado e a Caatinga como patrimônio nacional.
Também, com indignação, foram denunciadas as tentativas de criminalização dos movimentos do campo pelo judiciário, pelo Congresso e pelos grandes meios de comunicação. Enquanto isso o agronegócio que depreda e polui a natureza, expropria comunidades tradicionais e submete trabalhadores à escravidão, é apresentado como alavancador do progresso.
“Resistir para existir” (Zacarias,do Fundo de Pasto da Areia Grande, BA)
Ficamos entusiasmados em ouvir o testemunho corajoso da valentia de muitos companheiros e companheiras que continuam apostando na luta e na mudança. Alguns deles, ameaçados de morte, não temem continuar lutando por justiça e vida plena.
Maravilhou-nos o número de jovens presentes e a qualidade de sua participação. Eles e elas nos testemunham, com clareza, que as novas gerações acreditam que é possível vencer o individualismo mercantilista e consumista.
“Vocês precisam nos ajudar” (Augusto Justiniano de Souza, sindicalista, 55 anos, GO)
Nosso coração ficou apertado ao ouvir o grito de solidão, desamparo e abandono a que estão submetidos camponeses e camponesas em nosso País. Eles cobraram o apoio dos sindicatos, dos partidos e dos movimentos sociais que, outrora, os representavam e acompanhavam. Eles cobraram, também, o apoio firme da CNBB e sua palavra profética diante da gravidade da situação do campo.
Esta realidade e o clamor das camponesas e camponeses e dos povos tradicionais são um chamado para o discipulado e a missão da CPT, no seguimento de Jesus de Nazaré, na fidelidade aos Deus dos pobres e aos pobres da terra.
Pela força desta missão, a CPT assume:
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a luta pela terra e pelos territórios, combatendo o latifúndio e o agronegócio e incorporando, na luta pela Reforma Agrária, as exigências atuais de convivência com os diversos biomas e as diversas culturas dos povos que ali vivem e resistem, buscando formar comunidades sustentáveis. Como sinal concreto, compromete-se com a realização do Plebiscito Popular para se colocar um limite à propriedade da terra a ser realizado em setembro, junto com o Grito dos Excluídos, durante a semana da Pátria.
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o enfrentamento ao modelo predador do ambiente e escravizador da vida de pessoas e comunidades. Modelo assentado em monocultivos para exportação, amparado por mega-projetos impostos a toque de caixa. Emblemáticas desta resistência são as lutas contra a transposição do Rio São Francisco, contra as hidrelétricas a exemplo da de Belo Monte e de outras, propostas para a Amazônia, e o combate incansável da CPT contra o trabalho escravo.
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a formação para uma espiritualidade, centrada no seguimento radical de Jesus que nos dê força para não servir a dois senhores e que testemunhe os valores do Reino.
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a necessidade de contribuir com a articulação e o fortalecimento das organizações populares, do campo e da cidade, para que sejam protagonistas da construção de um novo projeto político para o Brasil que queremos, em união com os outros países da América Latina e Caribe avançando em direção a uma globalização justa e fraterna.
Ao concluir este III Congresso Nacional, a CPT renova seu compromisso profético-pastoral junto aos pobres da terra até que “o reinado sobre o mundo pertença ao nosso Senhor e ao seu Cristo e ele reinará para sempre e chegue o tempo em que serão destruídos os que destroem a terra” (Apoc. 11,15.18).
Montes Claros, 21 de maio de 2010.